“Dedicar-se à produção de vinhos naturais ou de mínima intervenção é parte do modo de vida do vinhateiro. Não é apenas uma forma de fazer vinho.”
Assim como no mundo da moda, o universo do vinho também passa por ondas de tendências. E, há algum tempo, os chamados vinhos naturais têm ganho destaque nas taças de quem está em busca de novas sensações. E é dessa forma que precisam ser avaliados. Afinal, são muito diferentes dos ditos convencionais.Como sofrem a mínima intervenção possível, revelam, a cada safra, além das características do terroir e de cada uva, a personalidade do ano, com as impressões digitais do clima.
Para os puristas, vinho natural se resume simplesmente ao mosto de uva de vinhas orgânicas que fermentaram com leveduras naturais e sem intervenção de qualquer tipo. Mas essa definição não é a mesma para todos os produtores. Há os que defendam que vinhos naturais seriam aqueles que sofrem o mínimo de intervenção possível, o que pode variar e muito na hora da vinificação.
A não adição de SO2 (sulfito), que garante a conservação do vinho, é um dos pontos de honra para a maioria dos produtores desses vinhos. É preciso lembrar, no entanto, que é impossível que um vinho seja 100% livre de sulfitos. Quando uma vinícola ou um produtor declara que seu vinho é livre de sulfitos, está se referindo aos que são adicionados na adega, não aqueles que se dão naturalmente durante a fermentação das uvas.
Outro ponto importante: por uma questão de princípios, o vinho natural “deveria” ser sempre produzido com uvas no mínimo orgânicas. O que nem sempre acontece. Especialistas defendem que a questão básica é confiança no produtor. É importante conhecer quem produz o vinho, para acreditar no que está escrito no rótulo (ou até que não existe nada que não esteja nele). Uma vez que não há uma legislação específica para os vinhos naturais.
Mas sabe-se que produzir vinho natural apenas de uva orgânica, hoje, no Brasil, é quase impossível. Especialistas garantem que se fosse decretada essa exigência, 99% dos vinhateiros brasileiros que produzem vinhos naturais teriam que deixar de fazê-lo. No entanto, poderiam e podem produzir vinho natural com menos intervenção, mesmo com uvas não orgânicas. O importante é deixar claro no rótulo o que está dentro da garrafa.
A nomenclatura é um ponto que tem causado polêmica em todo o mundo. O médico cardiologista Rubem Kunz, que, juntamente com sua esposa, Valéria Kunz, comanda a vinícola na Rua do Urtigão, na cidade de Taquara, defende que em lugar de vinhos naturais esses produtos sejam classificados como os de mínima intervenção. “Caso contrário, seria como dizer que os que são vinificados de forma convencional não seriam naturais.” A pequena dificuldade seria fazer com que os consumidores acabem por mudar a definição que já está incorporada em seu vocabulário.
Outro ponto ressaltado pelo médico vinhateiro é que a não existência de legislação específica para esses vinhos os deixa no limbo. Não existem parâmetros determinados por lei, é mais uma espécie de convenção. Mas o que torna os vinhos naturais atrativos para os consumidores, lembra, é que eles mostram sua personalidade, desde o cultivo da uva, onde foi plantada, como foi o ano, todas as características mantidas, sem qualquer modificação.
Cada vez mais os consumidores começam seriamente a questionar o que vai dentro do vinho que bebem, assim como milhões fazem em relação à comida. A recente onda de aumento de consumo dos vinhos naturais tem a ver com a busca por aqueles que tenham o mínimo de interferência química possível. Existem, hoje, cerca de 350 produtos químicos aplicados na agricultura e cerca de 400 produtos enológicos disponíveis para que um enólogo utilize na vinificação. Mesmo que a maioria das pessoas prefira pensar que os vinhos que escolhe beber sejam naturais, alguns podem estar distantes dessa expectativa, tamanha a adição de componentes químicos, que, diga-se de passagem, são permitidos pela legislação. É preciso ressaltar, no entanto, que apesar de existir esse tanto de aditivos enológicos à disposição, seria leviano acreditar que a indústria se utilize de tudo isso. E vale lembrar que mesmo as grandes indústrias estão procurando utilizar cada vez menos esses produtos, atendendo à exigência dos consumidores.
O que não quer dizer que os vinhos de menor intervenção sejam melhores ou piores que os ditos convencionais. São, isso sim, diferentes. Enquanto os últimos passam por uma espécie de definição prévia, cuja característica pode ser dada pelo enólogo durante a vinificação, os primeiros são um retrato de cada safra, de cada solo, de cada clima.
Quem pensa, no entanto, que a produção de vinhos naturais é uma novidade está enganado. O vinho natural foi o vinho que a humanidade bebeu por mais de 9 mil anos até que surgiram os adubos químicos, quebrando o equilíbrio que havia na agricultura. O desequilíbrio resultou no crescimento desordenado de gramíneas (as chamadas ervas daninhas) e fez surgirem os herbicidas, destruindo os predadores naturais dos insetos, resultando no aparecimento de pragas e fungos. Tudo isso mudou os métodos de plantio e cultivo, deixando a maior parte da agricultura refém dos produtos químicos.
O vinho natural voltou a ser elaborado no final da década de 1960, quando o enólogo e químico Jules Chauvet começou a testar voltar a fazer vinhos sem intervenção, como se fazia no passado. E, no início dos anos 80, Marcel Lapierre lançou um vinho sem SO2 que fez sucesso nas principais cartas de vinho do mundo: o Morgon. De lá para cá, os vinhos naturais têm ganho muitos apreciadores, depois de se lançarem em novas experiências de degustação.
Os principais produtores de vinhos naturais são antes de tudo defensores do método artesanal, resistem à monocultura. São sempre pequenos produtores que resistem ao modelo industrial de fazer vinhos, com o uso de aditivos enológicos. A maioria é adepta dos cultivos biodinâmico ou orgânico.
A degustação
O mais importante na hora de degustar um vinho de mínima intervenção é não compará-lo com um convencional da mesma casta. Isto porque os vinhos naturais têm cada um personalidade própria, mas que vai depender em muito de todas as influências da safra, do comportamento climático, do terroir. Sem interferências químicas que possam colocá-lo, pelas mãos dos enólogos, dentro de um perfil determinado pela vinícola, suas características vão se manifestar por si.
“O ideal é deixar de lado qualquer conceito anteriormente adquirido e se deixar levar por novas experiências”, recomenda Rubem Kunz.
Os vinhos
Biodinâmicos
Vinhos biodinâmicos são vinhos produzidos com uvas cultivadas seguindo os preceitos da agricultura biodinâmica, que vão desde a preparação do solo ao plantio e à colheita das uvas. Os vitivinicultores que praticam a agricultura biodinâmica seguem um calendário que leva em conta as fases da lua e o equilíbrio entre os elementos principais do planeta: a água, a terra, o fogo e o ar.
A agricultura biodinâmica é baseada no equilíbrio entre todos os elementos que integram o vinhedo: o solo, as plantas, o ser humano e os animais. Por conta disso, não são utilizados agrotóxicos ou fertilizantes no manejo do vinhedo. O processo de vinificação dos biodinâmicos também conta com algumas peculiaridades: são utilizadas leveduras nativas, ou indígenas, durante a fermentação, e as datas de trasfega e engarrafamento também seguem o calendário biodinâmico, evitando o uso de elementos como o dióxido de enxofre (SO2) na conservação dos vinhos.
Naturais
A ideia principal desses vinhos é intervir o menos possível nos processos, seja de cultivo, seja de vinificação. Devem ser evitados produtos químicos sintéticos, filtragem, adição de leveduras industriais, açúcar ou enzimas, e alguns podem até nem regular a temperatura de fermentação. Também são retirados, ou drasticamente reduzidos, os sulfitos (SO2), usados para prevenir a oxidação e afastar bactérias indesejadas. Apesar de que há os sulfitos formados naturalmente durante a fermentação das uvas.
Orgânicos
Também conhecidos como biológicos ou ecológicos, são elaborados a partir de uvas de cultivo orgânico. Isto é, o vinhedo do qual elas são originadas não recebe nenhum tipo de defensivo químico. Para proteger as videiras de pragas, os viticultores apostam em adubos animais e vegetais e no equilíbrio do próprio ecossistema, com vegetação nativa entre as linhas de videiras. Para ser considerado orgânico, o vinhedo não deve receber adubos químicos nem agrotóxicos por três anos, passando por uma espécie de “desintoxicação”. Além disso, é preciso manter áreas de preservação permanente e cuidar das espécies nativas e dos mananciais.
Veganos
O vinho vegano é uma bebida fermentada de uvas (como o vinho convencional), porém é feita sem o uso de insumos enológicos derivados de animais durante o processo de vinificação. Os métodos industriais mais tradicionais costumam envolver o uso de produtos de origem animal, derivados da clara de ovo, gelatina, bexiga de peixe e crustáceos, que são usados para clarificar o vinho e remover sedimentos. No entanto, as técnicas de vinificação veganas banem o uso desses produtos de origem animal e, em vez disso, usam alternativas à base de plantas, além de, algumas vezes, ignorar tais processos (em caso de vinhos naturais).
Os convencionais
- Os sulfitos (SO2) são um elemento fundamental no processo de produção do vinho, já que ocorrem naturalmente durante a fermentação.
- A prática de adicionar dióxido de enxofre (SO2) ao vinho durante o processo de produção, além do que se forma durante o processo de fermentação, é muito antiga, remontando à época do Império Romano.
- Com a modernização das técnicas de produção, cada vez mais produtores buscam limitar a adição de sulfitos. Muitas vezes isso não é possível, pois nem sempre a fermentação libera dióxido de enxofre o suficiente para que o vinho possa manter-se em boas condições de consumo por um longo período de tempo.
- Os vinhos que contam com um grande potencial de guarda têm uma maior quantidade de sulfitos adicionados. Enquanto vinhos pensados para consumo ainda jovens podem ter uma proporção menor de SO2.
- Diferentemente do que muita gente pensa, os vinhos tintos contêm menos sulfitos do que os vinhos brancos. Isso porque os vinhos tintos contam com uma maior concentração de taninos, que também agem como um agente conservante, sendo necessária uma menor quantidade de sulfitos para preservar a bebida.
- Os vinhos de sobremesa apresentam uma maior concentração de sulfitos, o que é explicado pelo processo de produção, onde a fermentação é interrompida precocemente, concentrando o nível de açúcar e o teor alcoólico, principalmente no caso dos vinhos fortificados, como o vinho do Porto.