Furei a pandemia com uma justificativa. Acompanhei a filha em seu deslocamento para estudar na França. Assumi o risco, pais vivem assim. Tentei furar menos em Paris, mas não fui de ferro. Juntei os pila e fui jantar no terraço do La Coupole. Quando estudei em Paris, no século passado, o La Coupole era inacessível para um estudante. Hoje é menos, devido a uma certa vingança do tempo, depois de muito trabalho para além do estudo.
Instalei-me no terraço (era verão) e pedi um copo de vinho rosé, da Provença, com uma garrafa d´água. Pouco vinho para muito preço, mas valeu. De entrada, ovos com maionese, sem exageros no investimento, que bolso nenhum é de ferro. O prato principal, rins ao molho mostarda, com batatas, mas, antes dele, senti uma pressão em um pé.
Constatei, então, que se deitava sobre o esquerdo um cão, mas logo vi que não era um qualquer. Cães continuavam reinando na França; mesmo assim, custei para crer. Era um pitbull. Seu dono fazia uns comandos, mas, já com meu outro pé completando o seu travesseiro, ele parecia ignorá-los, mais atento ao pão que eu molhava na maionese do que à voz frouxa do comando. O homem dizia couchez e o bicho se levantava; depois, levez, e o bicho se deitava.
Parecia um pitbull com transtorno de oposição desafiante. Meu medo era que o dono dissesse “vai lá fazer um carinho no tio”. Eu preferia que ele ordenasse “ataca”.
Eu agora molhava o pão, de forma trêmula. Sim, não há acasos e sim novas vinganças, no caso uma das bem divinas, contra quem furava a pandemia, no caso eu, ainda mais usando a filha. Ou era isso ou era azar. Foi de verdade um jantar tenso, especialmente na hora dos rins, tipicamente à francesa, ou seja, meio crus e sangrando muito.
O nariz do pit (sim, eu tentava alguma intimidade para sobreviver) balançava por todas as direções, mas o par de olhos determinados se fixavam nos meus, com um leve desvio na direção dos meus rins, quer dizer, dos rins do meu prato. Já estava negociando com o cão que escolhesse as vísceras francesas, mas ele, de fato, não obedecia comandos.
Então, rezei, rezei muito, exatamente como venho fazendo quando não estou no La Coupole.