O processo de desumanização dos judeus que permitiu o holocausto ocorreu paralelo ao uso de estrelas costuradas no peito, números tatuados no braço e nomes impostos.
Sancionada pelo parlamento alemão em 1938, a Lei dos Nomes exigiu que todos os judeus com prenomes laicos assumissem os nomes Israel ou Sara. Era crime a não explicitação desses nomes de qualificação racial em qualquer correspondência, documentação, assinatura, apresentação e mesmo conversa informal.
Os nomes eram encravados imediatamente antes do sobrenome, a posição de designação no idioma alemão. Assim como Wolfgang Amadeus Mozart é conhecido como Amadeus Mozart, um Horst Israel Levy tornava-se Israel Levy.
Judeus estrangeiros ou exilados passaram a ter o pronome ‘Jud’ – ou Halbjud, ‘metade judeu’ – atrelado a seus nomes na linguagem falada e escrita: Jud Trotsky, Jud Einstein, Halbjud Laguardia.
Recém-nascidos arianos não podiam receber nomes judaicos ou bíblicos. Aos alemães que já os possuíssem foi facilitada a correção: Um Israel passou a Oesterhelt, Christa virou Krista. O nome Adolf tornou-se tão popular que teve seu uso regulamentado, foi interditado em cavalos de corrida, cachorros e gatos.
O Reich de 1000 anos durou 12. Graças à derrota, o nome Adolf perdeu o glamour e as 22 entradas com o sobrenome Hitler da Lista Telefônica de Nova York em 1933 escafederam-se em 1945, substituídas por Hillers e Hiltons. William Hitler, o sobrinho do fuhrer que lutou na marinha norte-americana, repaginou-se como William Houston.
Por outro lado, muitos sobreviventes judeus que migraram para a Palestina começaram novas vidas trocando seus nomes germânicos ou russos por hebraicos: David Ben Gurion chamava-se David Brun e Golda Meir nasceu Golda Meyerson.
Assim como os judeus no III Reich, os escravos no Brasil tinham os nomes arbitrados por seus senhores no momento da compra. No Império Romano os escravos eram chamados pelo prenome do proprietário junto ao sufixo ‘por’ (afim ao L. puer, ‘criança’), p. ex., Gaiupor, escravo de Gaius.
Não era muito diferente com as mulheres romanas: todas as filhas de um casal dividiam o mesmo registro civil, o feminino do sobrenome paterno, p. ex., Faustina ou Priscilla. Ao casar, mantinham o prenome paterno e assumiam o sobrenome do marido: Antonia Pompeii, filha de Antonio, esposa de Pompeu…
Marca sonora de identidade, o nome é a sombra do homem, “pedaço da alma”, diz Freud em Totem e Tabu. Intervir no nome é violentar a pessoa, imposição típica das tiranias, prisões, ordens religiosas e manicômios.
Marca sonora de identidade, o nome é a sombra do homem, “pedaço da alma”, diz Freud em Totem e Tabu
Já no latim, nomen tem o sentido de ‘reputação’. Se o anônimo esconde o nome, o renomado tem o nome repetido por todos. Ignomínia, termo bíblico, é uma grande desonra, o nome exposto, ‘sujo na praça’.
Conforme Plínio (Séc. I), os Atlas não eram humanos por não terem nem sonhos, nem nomes. Na mais famosa das histórias infantis, Alice recebe de um mosquito o conselho de renunciar ao nome pelas vantagens do anonimato e da insignificância: “a governanta não teria como lhe chamar para as lições…”
Uma universal cultural, o nome tende a individualizar o indivíduo com referência a origem, atividade, afiliação, vassalagem, características físicas, atributos ou valores. Natural que a dieta, tão relacionada à cultura, à subsistência e ao prazer, passasse à onomástica. Diz-me o que comes e darei teu nome.
Magri, Graciliano, Delgado e Gerda significam ‘magro, franzino’; Fialho é um ‘fiapo’, Virgílio, Virgolino vem de ‘vara’, alguém magro como uma vara. Os nomes italianos Grassi e Grossi, o árabe Maluf, o francês Randon e o russo Tolstoi, todos têm o sentido de ‘gordo’. Mangione e Goulart (<F. goula, como em gula) descrevem o ‘glutão’ e Zuleica é a palavra árabe para ‘roliça’, gordinha.
São comuns os nomes nascidos do comer: Cook e Koch são cozinheiros, Fishman e Fisher são pescadores, Hunter é caçador, Fleitcher é açougueiro, Shepherd, Cabreira, Pastore, Pastorino e Pasteur são todos pastores.
O pão, o moinho, a farinha e o padeiro ressoam em vários idiomas: Brod, Brodt, Brodbeck, Baker, Muller, Mill, Milman, Mallory, Molina, Molinari, Farina e Centeno (<centeio). Curioso que Jesus – que se representou como pão, o mais simbólico dos alimentos – tenha nascido em Belém (H. Beit Lehem, ‘casa do pão’), uma padaria.
Que o vinho harmonize o pão na Eucaristia dá sua transcendência na tradição judaico-cristã. Há os Vinhas, Vinhole, Vignole, Vinhatti, Videira, Weinn, e ainda o Barichello, ‘pequeno barril’, e o Cooper, ‘construtor de barris’.
Além de pão e vinho, Jesus é o Cristo, a tradução grega do H. Messias, na origem o ‘ungido’, untado em azeite. Ritos de sagração de papas e reis envolvem rituais com banhos de óleo, originalmente de oliva. A oliva, junto com o pão e o vinho, desenham o triângulo alimentar da cultura mediterrânea, daí os nomes Oliveira, Olivares, Olivetti, Olivier, Oliven, Oliver, os prenomes Nol (abreviatura de Oliver), Oli, Olívia e ainda Said, ‘oliva’ em árabe, base do termo azeite.
No latim, nomen tem o sentido de ‘reputação’. Se o anônimo esconde o nome, o renomado tem o nome repetido por todos
O peixe, outra marca mediterrânea e cristã, e os frutos do mar comparecem em vários nomes. Pero Sardinha, o primeiro bispo do Brasil, foi devorado pelos Caetés assim que saiu do mar (após um naufrágio) em Pernambuco (1556). Nascido em Caetés, Pernambuco, o presidente Luiz Inácio acrescentou Lula ao nome – na verdade um hipocorístico de Luiz. Fernandes Vieira combateu os holandeses junto a Felipe Camarão, nome de batismo do índio Poti, que em tupi quer dizer ‘camarão’. André Calamares é um roqueiro argentino.
Os únicos alimentos exclusivos são o leite o mel – não têm outro fim que não seja nutrir novas gerações. Canaã é a terra do leite e mel, a cidade do porvir. O sobrenome Leite invoca tanto pureza como cuidado materno e os nomes Milk, Milke e Milkman falam do leite e do leiteiro. Para acompanhar o leite, os políticos Café Filho e Epitácio Cafeteira.
O mel está em Melissa, Melina e Pamela. Débora é a palavra hebraica para abelha e Iracema quer dizer enxame em tupi. O Mel masculino – Mel Gibson, Mel Brooks – é bem outro, o diminutivo de Melvile, ‘má vila’.
Conheço duas Caramel e nenhum Caramelo. Nomes doces tendem a ser femininos: Dulce, Dulcinda e Ducineia, a musa de Quixote. Mas sons podem enganar, Saccaro, sobrenome siciliano, não vem de sacarose, mas do A. saqqua, o ‘carregador de água’, o mais fundamental dos alimentos.
Nomes temperados, há Salgado e Salter, há Pimenta, Pimentel e Pepper, como o jazzista Art Pepper e o Sargento Pepper da Heart’s Club Band. Rosemari soa como a reunião de Rosa com Maria, mas é rosmarinus (L. ros, ‘orvalho’; marinus, ‘marinho’) nome latino do alecrim. Ginger, ‘gengibre’, pode ser nome, sobrenome ou apelido; como os talos e flores do gengibre são avermelhados, ginger adquiriu o sentido de ‘ruivo’.
Pizzarelli, Muzzarelli e Massa são sobrenomes bem italianos, embora haja o Massa português. Berço do risoto, a Itália tem os Rizzo e os Rizzardo com base no arroz. O Rice de Condoleezza Rice vem do celta ris, ‘ardor’, nada a ver com arroz.
Feijó, Fávero e Fayet, o germânico Bohn e o eslavo Bobal são alusivos a feijão, favas. Fabio é mais aparentado a fava que a faber, ‘fazer’. Sean Bean ganhou notoriedade em Game of Thrones e, com conotações autodepreciativas, temos o humorista inglês Mr. Bean.
Barney e Barnes remetem ao I. barn, ‘celeiro’, antes o local ´para armazenar cevada (I. barley). Keller era o porão para estocar grãos e fermentar vinho, sua origem é o L. cellarius, ‘cela, pequena peça’. Garner, Garnier e Granato derivam do L. granarium, ‘depósito de grãos’. Ceres é a deusa romana dos cereais e Demetria é sua equivalente grega.
O nome do poeta Jean Racine se refere à raiz vegetal (F. racine, ‘raiz’), o do músico Beethoven (beetroot, ‘rabanete’; hoven, ‘plantação’) traduz-se por ‘campo de rabanetes’, o mesmo que Rabelo e Rebelo < L. rapanelu, ‘rabanete’. O escritor Boris Pasternak traz no sobrenome o ‘nabo’ (L. pastinaca) e o chanceler Helmuth Kohl, tem o ‘repolho’, um gêmeo da couve (<L. caulis, ‘caule’). Cícero quer dizer ‘ervilha’ (G. cicer) e, se Platão é um prato grande, Pires não é prato pequeno, sua base estaria em Pedro (G. petrus, ‘pedra’)
Madureira descreve o local de amadurecer frutos, Siqueira (Sequeira), o de secar frutos, fazer passas, e Policarpo significa ‘muitos frutos’. Não faltam frutíferas: Pereira, Limeira, Laranjeira, Nogueira, Castanheira, Castanheda, Figueiras, Figueiredo, Figueiró e Figueiroa. Amorim, Moreira e Morais são relacionados à amoreira. Mangabeira é a árvore das mangabas, a fruta da catinga. E temos Marília Pera, Fernanda Lima, Terezinha Morango, Camila Pitanga e Ivo Pitangui, (rio das pitangas). Tamar e Tamara têm origem hebraica, ‘tâmara’ e Mandel é ‘amêndoa’ em ídiche. Cerise (cereja) é um nome comum na língua inglesa assim como o Berry (fruto) do guitarrista Chuck Berry e da atriz Hallen Berry. Jack Lemon recusou um pseudônimo artístico na expectativa de que o estrelato fizesse de seu limão uma limonada. Na verdade Lemon vem do inglês arcaico Leofman (leof, ‘querido’ mann, ‘homem’).
Historicamente o alimento mais valorizado, não faltam nomes carnívoros: Tourinho, Touro, Bezerra, Bull, Bullock, Lamb, Cordeiro e Carneiro. O G. Agnes, ‘cordeiro’, de forte presença bíblica, aparece em Ines e Agnello. Se o cordeiro é ‘pureza’, o porco, injuriado em porcaria e sujeira (<L. sus, ‘suíno’), é redimido no sobrenome Leitão.
Codorniz remete às aves que Deus fez caírem ao solo para alimentar a caravana de Moisés, ‘a uma altura de 90 cm num raio de 1 dia de caminhada’ (Num :11). Se na Inglaterra temos os Partridge, ‘perdiz’, em Portugal há muitos Galos e Pintos, e a Itália, com um gosto por aves pequenas desde tempos romanos, é pródiga nos Galletti, Gallino e Galloni.
Jean-Marc Vacheron, um descendente de ‘vaqueiro’, tornou-se o famoso relojoeiro (1755). Alvar Cabeza de Vaca fez o trekking pioneiro no Novo Mundo (1540), uma trilha desde a ilha de Florianópolis até a recém fundada Assunção. O Brasil foi oficialmente achado por Cabral, a América, por Colombo, ave com um passado na comunicação e alimentação. O Marques do Pombal fez os jesuítas voarem de Portugal (1759) como conta Rocha Pombo em seu livro de História. E Picasso – que doou sua pomba da paz para divulgar um evento pro-soviético em 1949 – deu à filha o nome de Paloma. A menina nasceu no dia em que os cartazes da pomba promovendo Stalin eram fixados nos muros de Paris.
As interações ocorrem em via dupla, assim como concedem, as comidas recebem nomes de pessoas. Seja a Madelaine, a serviçal no confeito, Margherida, a rainha na pizza, Marta Rocha, a miss na torta, ou Sandwich, o lorde no pão, há glória maior que dar nome ao prazer de comer?
Mas este é outro assunto.