A Torre de Belém, em Lisboa, protegia a entrada do Tejo e era o local de onde partiam as caravelas em direção ao desconhecido
Uma das minhas paixões de infância eram as aventuras de “Simbad, o marujo” enfrentando os mares e desbravando terras exóticas. As estórias de Sherazade que prenderam a atenção de seu sultão por “Mil e uma noites” faziam me imaginar navegando do golfo pérsico aos mercados de especiarias da costa da Índia. Também no meu imaginário de garoto despontavam os exploradores das Grandes Navegações, como Bartolomeu Dias e Vasco da Gama, que se lançaram em mares desconhecidos no caminho das Índias e de uma rota comercial direta entre a Europa e os mercados de temperos das estórias de Simbad na Ásia.
Essas conquistas dos mares acabariam com o monopólio dos árabes no Oceano Índico, levariam ao declínio da milenar rota da seda e das especiarias e fariam de Portugal a primeira potência naval e global do século XVI. Todas essas imagens foram revividas em recente navegação de duas semanas partindo de Portugal e desvendando os arquipélagos de Açores, Madeira e Canárias. Ainda em Lisboa, a guia Alexandra Cavaco nos levou à Torre de Belém, que protegia a entrada do Tejo e de onde partiam as caravelas daquela pequena nação do extremo ocidental do continente europeu em direção ao desconhecido.
O reino de Portugal, fundado em 1143 por Afonso Henrique, tinha de um lado as terras de Espanha e de outro as águas do Atlântico. Tratava-se do último ponto da longa rota comercial que iniciava no Oriente, atravessava a Ásia até Constantinopla, e com mercadores venezianos e genoveses, através do Mediterrâneo, chegava ao extremo ocidental da Europa continental.
Essa geografia foi determinante para o pequeno reino se lançar em mares desconhecidos, a fim de ampliar o limitado horizonte português. Os destemidos exploradores irão traçar novas rotas marítimas, chegar em terras longínquas e construir um vasto império comercial e colonial.
Embalados por esses grandes feitos navegamos em um final de tarde pelo Tejo em direção ao imenso Oceano Atlântico. Enfrentamos dois dias de mar agitado que já nos dava uma ideia das dificuldades que os tripulantes teriam enfrentado nas naus portuguesas de meio milênio atrás. A moderna tecnologia naval com seus estabilizadores ameniza o balanço, mas os mares, tanto hoje como no passado, continuam soberanos.
Diferente dos espaços exíguos do passado, nossa “caravela” era o confortável SilverSea Moon, um cruzeiro de luxo com apenas 250 cabines com amplas áreas de convívio, 8 restaurantes para saborosas experiências gastronômicas, auditório para palestras e espetáculos musicais, salas de jazz e dança, além de piscina, spa e academia.
Os 45 expedicionários do Grand Tour Trip Travel adoraram a “casinha sobre águas”, onde cada um de nós customizava prazerosas vivências a bordo, de acordo com os interesses, em minigrupos de afinidades. Além disso, com um tripulante para cada hóspede éramos continuamente surpreendidos pelos mimos da atenda equipe SilverSea.
A chegada ao Arquipélago dos Açores
Após desfrutar desses dois dias a bordo, cruzando 1.565 km entre Lisboa e Açores, avistamos finalmente terra. Nossa primeira parada foi no arquipélago dos Açores, quase no meio do caminho entre a Europa e as Américas, que reúne nove ilhas – Terceira e São Miguel, que visitamos, além de Santa Maria, Faial, Pico, São Jorge, Graciosa, Flores e Corvo.
Como os demais arquipélagos que visitamos nessa expedição, são ilhas vulcânicas que surgiram, há milhões de anos, de falhas no encontro das placas tectônicas americana, europeia e africana.
A ilha Terceira surgiu da erupção de 3 vulcões principais há 3,5 milhões de anos. Enquanto a vizinha ilha de S. Miguel foi formada em uma erupção há 5 milhões de anos, enquanto a ilha de Santa Maria, a mais antiga, há 8 milhões de anos. Todas essas ilhas estão ainda sujeitas a abalos sísmicos e erupções vulcânicas.
Essa formação fica evidente no cenário com maciços rochosos erguendo-se de
milhares de quilômetros do fundo dos mares, com encostas montanhosas e vales verdejantes que iríamos desbravar ao longo das duas semanas seguintes.
Ilha Terceira, Açores
Os portugueses foram os primeiros europeus a chegarem nos Açores em 1427 e estabeleceram os primeiros assentamentos humanos na década seguinte. Atracamos na Praia da Vitoria, na ilha Terceira, que com 27 km de largura e 19 km de altura é a terceira maior ilha em área do arquipélago.
Desembarcamos logo para percorrer em nosso ritmo a bela cidade costeira, fundada em 1480. Com as calçadas de pedra, igrejas e praças, e um casario familiar às das cidades brasileiras do período colonial português. Visitamos o bem preservado mercado de 1670 e o pequeno forte do século XVI ao sul da praia. Aprendemos que o nome do povoado se dá pela vitória em 1829, nessa ilha, de “nosso” Dom Pedro I, e as suas forças liberais, contra os conservadores que apoiavam seu irmão Don Miguel, garantindo o trono português à sua filha Dona Maria da Glória.
Nos encantamos com as construções brancas com detalhes coloridos nas aberturas e a arquitetura barroca da igreja Matriz, com o portal doado pelo rei Dom Manoel I, com seu interior ricamente decorado com dourado e azulejos. Já a igreja da Misericórdia, pela peculiaridade de ter um altar e coro duplo. Tratava-se de capelas de duas ordens religiosas vizinhas, a de Santo Cristo e da Misericórdia, ambas do século XVI, que após parcialmente destruídas em um incêndio em 1921 tiveram o conjunto religioso reconstruído como uma igreja única.
Caminhamos pelo calçadão à beira-mar junto à marina, imaginando a movimentação dessa tranquila Açores na Segunda Guerra Mundial quando, apesar de Portugal permanecer neutro, autorizou os britânicos a estabelecerem na ilha Terceira, em 1943, a base aérea de Lajes, ampliada pelos americanos em 1944 e utilizada como ponto de abastecimento na rota transatlântica.
Praia da vitória, uma cidade de 20 mil habitantes e o segundo maior núcleo urbano da Ilha, tem ensino médio e profissional com capacidade de mil alunos. As áreas técnicas em hotelaria e turismo, com o apoio da União Europeia, são uma forma de manter os jovens na ilha, com a crescente indústria do turismo. Segundo Rui, nosso guia, 20% da sua geração abandonou o arquipélago e foi para Portugal continental e outros países europeus. Em gerações anteriores, o cenário já foi ainda pior, com a diáspora açoriana com um milhão de descendentes de ilhéus nos Estados Unidos, Canadá e Bermudas – quatro vezes mais que a população do arquipélago.
Ao cruzar a ilha montanhosa, avistamos vales com pastagens para as 100 mil cabeças de gado da ilha, principalmente holandês e jersey, com ordenha mecanizada duas vezes por dia. Os laticínios compõem a maior fonte econômica, junto com a pesca e o turismo crescente.
Chegando a Angra do Heroísmo, do alto da colina do forte, tivemos uma vista cênica da marina e seu belo conjunto urbano. A cidade, a maior da ilha, teve um papel importante dos séculos XVI XVIII, como principal centro Atlântico na era das grandes navegações – tanto para reabastecimento como no conserto dos navios.
Ao caminhar pelo centro histórico, Patrimônio da Humanidade pela Unesco, passando pelo jardim botânico, antigo mosteiro franciscano, o Palácio dos Capitães-Generais, a Catedral da Sé e a prefeitura – construções portuguesas da época das grandes navegações –, me imaginei numa viagem no tempo.
Ilha São Miguel, Açores
O legal de viajar de barco é que não perdemos tempo em deslocamento, navegando à noite e aproveitando o dia para descobrir as atrações de cada ilha. Em São Miguel, a maior e mais populosa ilha do arquipélago, com 120 mil habitantes, conseguimos em um único dia percorrer a maior parte da ilha. Pela manhã, atravessando-a de sul a norte até Ribeira Grande, e à tarde seguindo as montanhas vulcânicas do extremo oeste.
As brumas esconderam o Pico do Fogo, no centro de São Miguel, mas se abriram discretamente para apreciarmos a lagoa formada na base do vulcão Sete Cidades, já extinto. Um experiência única off road, com jeep 4×4, pela estreita cratera, com as íngremes paredes rochosas, cobertas por vegetação, mergulhando de um lado no vulcão e de outro no Atlântico. A ilha é um paraíso de ecoturismo, com inúmeras trilhas para montanhistas com os quais nos cruzamos ao longo do caminho de estradas de chão. Ao longo do caminho, muitas hortênsias, que são bem presentes em todas as ilhas dos Açores, além de bosques de cedro japonês, introduzidos no arquipélago.
As duas cidades mais atraentes são Ponta Delgada, onde atracamos, e a Ribeira da Ilha, com belos conjuntos urbanos que nos remetem ao passado com suas edificações de época, praças, igrejas e imponentes prédios públicos e culturais.
Os pacatos povoados ao longo das ilhas se movimentam com as festas religiosas de freguesias e culminam com touradas – uma tradição popular em Açores.
O ciclo da laranja, produto agrícola mais importante da ilha, que abastecia as embarcações desde o início das grandes navegações no séc. XVI, perdurou até meados do século XIX, quando as árvores foram afetadas por fungos que dizimaram os pomares. Hoje, as estufas de abacaxi garantem uma produção de um milhão de frutos por ano. Mas é o leite o principal produto da ilha, com 1,2 milhão de litros anualmente, e o turismo é a maior fonte de divisas, com 3 milhões de leitos por ano.
Como uma forma de integrar o arquipélago entre si e com Portugal continental, o governo subsidia para a população local o transporte aéreo entre ilhas e para Lisboa.
Há também ferries entre ilhas, sendo que o ferry entre a ilha Terceira e a ilha São Miguel, que visitamos, tem 2h30 de duração.
Gostei muito de conhecer o arquipélago dos Açores por sua natureza ímpar de ilhas vulcânicas no meio do Oceano Atlântico e por sua história ligada às conquistas marítimas portuguesas e à formação de Porto Alegre, quando na metade do século XVIII foram enviados ao Rio Grande do Sul 60 casais de açorianos, a fim de garantir ao reino português a posse do sul do Brasil, sempre disputado com a Espanha.
Uma ligação entre diferentes partes da história que viajar nos proporciona, completando as peças do grande quebra-cabeça que é o planeta Terra. Adorei. Recomendo.