Uma viagem única ao tempo áureo
medieval de Samarkank, Bhukara e Khiva
Em minha recente viagem pela Ásia Central percorri a antiga Rota da Seda, que conectava o Extremo Oriente com a Europa e possibilitava o contato entre as grandes civilizações da China e da Índia com a Mesopotâmia, o Oriente Médio e a Europa. Caravanas comerciais, missões diplomáticas, religiosas e militares passaram, ao longo de um milênio, por este caminho, atravessando vales férteis, desertos, montanhas e estepes.
Foi uma viagem única ao tempo áureo medieval de Samarkank, Bhukara e Khiva, com toda a diversidade étnica de Uzbecos, Cazaques e Tadjiques que compõe o mosaico humano local.
Este recorrido pelas lendárias cidades da milenar Rota da Seda, Patrimônio da Humanidade pela Unesco e palco de ação de personagens da história universal, como Alexandre, Genghis Khan e Tamerlão, e de nosso imaginário viajante Marco Polo, já prometia ser especial. Aliado a isso, a situação geográfica peculiar entre o mar Cáspio e a cordilheira Tiam Shan, com a Sibéria ao norte e o Afeganistão ao sul, que faz da Ásia Central uma das regiões mais remotas da Terra.
Ainda mais instigante, a situação geopolítica do Uzbequistão: ex-República Soviética, que passou a ser aliada norte-americana na ocupação do Afeganistão, e volta a resgatar o seu milenar papel como entreposto comercial com a Nova Rota da Seda que a China está implantando (através da Asia Central, voltando a ligá-la por via terrestre com o resto do mundo, passando pelo Cáucaso e Mesopotâmia).
Revisitando a rota
Eu receava muito em voltar à Ásia Central, região que eu havia desbravado há um quarto de século, logo após o desmembramento da União Soviética, com esses jovens países se constituindo com grande dificuldade. Essa havia sido a minha viagem mais desafiadora, tanto pela dificuldade na obtenção de vistos como pela falta total de infraestrutura turística e dificuldade de comunicação.
Naquela viagem de 1998 ficamos acomodados em casas de família e pousadas, viajamos por terra com um motorista russo e uma guia que falava um inglês péssimo. Aliado a isso, a falta de relato de viajantes anteriores e de “guidebooks” fazia com que tivéssemos descobertas diárias ao longo do caminho.
Por tudo isso, a região sempre esteve nas minhas lembranças como uma das mais instigantes. Essa viagem estava em 2º lugar na lista afetiva, logo após o ano sabático na Ásia que mudou minha vida, uma década antes.
Ao retornar à Ásia Central, que havia me marcado tanto, acompanhando desta vez o Grand Tour Trip Travel, ficando no que havia de melhor em termos de hotelaria e serviços, temia a quebra do encanto da memória do passado. Mas, ao contrário, senti como uma complementação desse mosaico espacial-temporal e meu fascínio pela região aumentou ainda mais. Como sabemos, o passado não volta, e cada etapa de vida nos proporciona experiencias diversas.
O viajante destemido de então, com o prazer em enfrentar desafios, deu lugar ao olhar mais “vintage”, mas sempre curioso, de hoje em dia. Pude entender o avanço do Uzbequistão em tantas áreas, tanto na preservação de seu imenso patrimônio cultural como no desenvolvimento econômico e, aproveitando sua situação geopolítica, se beneficiando da Nova Rota da Seda impulsionada pelo poderio chinês.
Espero, no relato a seguir, fazer as amarrações de memórias do passado e constatações do presente, que, aliás, mantêm a Ásia Central no meu topo da lista.
O impressionante legado arquitetônico do império Timuríade
e das dinastias Shaybanid (Bukhara) e Khorezm (Khiva)
A Ásia Central é habitada por povos de origem turca e religião muçulmana, nômades provenientes do sul da Sibéria que a partir do século X emigraram para essa região.
Ao longo da História, vários impérios persas e turcos se estabeleceram na região, arrasados pelas tropas mongóis de Genghis Khan em 1220. O império Mongol se estendia da China à Europa e através dele a Rota da Seda prosperou, com trocas culturais e comerciais ao longo do caminho. Permanece até nossos dias um impressionante legado arquitetônico do império Timuríade do século XIV, e das dinastias Shaybanid em Bukhara e Khorezm em Khiva, no século XVI. Toda a região caiu sob dominação da Rússia Czarista no final do século XIX, e dos bolchevistas a partir de 1917.
Com o desmembramento da União Soviética em 1991, as cinco repúblicas da Ásia Central se declararam independentes. Na década seguinte, entram na área de interesse americano, em função do envolvimento com o vizinho Afeganistão, e atualmente se aproximam da poderosa China, que investe na “nova Rota da Seda”. Uma fascinante viagem pela intrincada geopolítica global no coração da Ásia, que possibilitou aos poucos ir entendendo esse complexo quebra-cabeça.
Tashkent
A capital, é o ponto de entrada no país, com voos direto do Oriente Médio, Europa e Turquia – que foi a via de acesso escolhida com a Turkish Airways por Istambul. Tashkent é a maior cidade do Uzbequistão, com 2,5 milhões de habitantes, e a principal cidade da Ásia Central. A cidade mais moderna e desenvolvida do país tem forte influência soviética, pois foi o epicentro de um terremoto que em 1966 a destruiu, sendo reconstruída no estilo arquitetônico do funcionalismo soviético da época.
Percorreremos seus grandes boulevards arborizados até a Praça Central, onde ficava o forte do governador do Turquestão no período Czarista, e a estátua de Lênin da época soviética foi substituída pelo Monumento da Independência.
Já na Praça Amir Temur está o monumento a Tamerlão, o último dos grandes conquistadores nômades da Ásia Central, que governou, no século XIV, a partir do Uzbequistão, um vasto império que se estendeu do Cáucaso à Índia. No entorno, o imponente Teatro Nava’i, que recebia durante o período soviético os seus melhores espetáculos de balé e ópera.
A cidade preserva também uma parte antiga, medieval e islâmica, em torno da Madraça Barak-Khan, construída no século XVI por Suyunidzh-Khan, neto do famoso astrônomo Ulugbek, do qual falaremos mais adiante. A biblioteca da mesquita Muy-Mubarak Mosque abriga uma preciosidade – uma cópia do primeiro Alcorão manuscrito do mundo, Alcorão do Califa Osman do século VII, e um fio de cabelo do profeta Maomé.
Samarkand
Um confortável trem de alta velocidade, o Afrosiab, nos levou em apenas duas horas da modernidade de Tashkent do séc. XXI a uma volta de 2.500 anos no tempo, até o antigo reino persa de Sogdiana em Samarkand.
Samarkand foi a capital da Satrápia de Sogdiana sob a dinastia Aquemênida. Em função de sua posição estratégica na antiga Rota da Seda, entre a China e a Mesopotâmia, tornou-se uma das mais importantes cidades do Império persa. Nos entornos da cidade visitamos as escavações do sítio arqueológico de Afrasiyab, onde se encontram vestígios de um antigo assentamento que existiu do século VII a.C. até́ o século XIII d.C. – fazendo de Samarkand uma das mais antigas cidades do mundo ainda habitadas.
Conquistada por Alexandre, o Grande em 328 a.C. Fez parte, posteriormente, do império Selêucida, reino Greco-Bactriano e império Sassânida. Islamizada com a invasão árabe, perde seu idioma e cultura a partir do século IX.
Arrasada pelos mongóis em 1220, teve seu apogeu no final do séc. XIV com Tamerlão, o último dos grandes conquistadores nômades de origem turco-mongol. Ele devolve o antigo esplendor da cidade, trazendo para sua capital os melhores artesãos do seu império, que se estendia da Turquia à Índia.
Samarkand atinge o ápice no florescimento das artes e literatura com Ulughbek, neto de Tamerlão, grande matemático e astrônomo, que deixou como legado seu impressionante observatório.
Conferimos todo o legado arquitetônico e artístico do período Timuriade na Praça do Registan, um complexo magistral de 3 Madraças (escolas religiosas): a de Ulug Bek, do século XV, a de Shir-Dor e de Tillya-Kori, do século XVII. Com seus iwans, domos e minaretes ricamente decorados. Centro da vida pública na Idade Média, a praça foi restaurada em 1920, sendo um dos mais importantes atrativos turísticos da Ásia central, para onde retornei várias vezes ao longo daqueles dias para conferir os imponentes prédios com as diferentes luminosidades do início e final do dia, além de sob os holofotes à noite. Mágico.
Visitamos também em Samarkand o Mausoléu de Gur Emir – complexo arquitetônico com uma cúpula reluzente de cor azul-celeste, onde estão as tumbas de Tamerlão e seus filhos e o neto Ulugbek.
Em 2001, Samarkand, que nos tempos de Tamerlão era considerada a cidade mais bonita do mundo, foi reconhecida como Patrimônio da Humanidade pela Unesco.
Perambulamos pelas ruelas de adobe de
Bukhara, entre pátios internos de prédios islâmicos,
museus e restaurantes tradicionais
Bukhara
Entre as lendárias cidades da Ásia Central, Bukhara continua sendo a minha predileta. A antiga capital da dinastia persa dos Samanids era, no séc. IX, o centro mundial da cultura islâmica, com 113 Madraças que abrigaram intelectuais como o famoso médico Abu Ali Ibs-Sina (Avicena), o matemático Al-Beruni e o filosofo e escritor Omar Kayam.
O centro medieval de Bukhara me remete a uma cena de um quarto de século atrás, quando correndo pelas ruelas de Bukhara para fotografar a Minarete Kalyan (XII) antes do pôr do sol tive um encontro inusitado com Gerhard, cônsul alemão no Uzbequistão, o elo, então, entre Porto Alegre e Ásia Central.
Tudo começara com uma matéria na Zero Hora, em cima da minha mesa de trabalho, sobre a mostra da gaúcha Sara Slomka no foyer do Theatro São Pedro. Atendia o querido Ênio Lindenbaum, organizando uma de suas viagens, quando me pergunta o motivo daquele recorte. Falei de meu sonho em visitar a Ásia Central, que recém se abria para o mundo após sete décadas sob jugo soviético. Ao mencionar que gostaria de conhecer a fotógrafa que registrara a região no ano anterior, me disse que era primo dela e já nos colocou em contato. Minha amiga Eleonora, com quem eu viajaria, veio do Rio de Janeiro para conversar com Sara sobre o destino que ela percorrera e registrara nas fotos em exibição. Sara e Renato nos contaram dos amigos Gabriela e Gerhard, diplomatas alemães que serviram em Porto Alegre quando viraram grandes amigos, e razão para visitá-los no novo posto em Tashkent. Chegando na capital Uzbeca os procuramos no consulado e fomos informados que Gerhard não se encontrava, pois circulava pelo interior do país. Naquele final de tarde em Bukhara, ao encontrar um estrangeiro que falava português, só poderia ser o “nosso” alemão. Acabamos subindo juntos a Minarete Kalyan e apreciando o pôr do sol lá de cima, jantamos e somos amigos até hoje.
Como sabemos, nunca nada é por coincidência, mas sim alinhamento de energias.
De volta a Bukhara em outubro passado, me recordo de Sara e Gerhard, e do seu centro medieval que tanto me encantara. Escolhi um antigo Karavansaray, hospedagem das caravanas que cruzavam a Rota da Seda, revitalizado em hotel boutique no meio da parte antiga.
Superbem localizado entre o Baazar Bukhara Dome, do século XVI, com os setores tradicionais de artesões de tapetes, joias, seda e cerâmicas; e a apenas duas quadras do conjunto arquitetônico de Po-i-Kalyan, com seu intricado trabalho de tijolos e reluzentes ladrilhos policromáticos em torno da “nossa” Minarete Kalyan, do século XII, com a mesquita Kalyan e as madraças de Ulugbek, de 1417, e Miri Arab, do século XVI, que compõe o coração religioso da Sagrada Bukhara.
Por três dias perambulamos por suas ruelas de adobe, entre pátios internos de prédios islâmicos, museus e restaurantes tradicionais. Um verdadeiro mergulho na antiga capital Shaybanid do século XVI, quando o grande Khan Abdullah II governava a partir da Fortaleza Ark – sede do poder que resiste aos séculos até a queda do emirado de Bukhara, somente em 1920, quando é incorporado à URSS.
Adorei também o dia no complexo arquitetônico Lyabi Hauz, como em Samarkand, uma grande praça rodeada de madraças, negociando tecidos e pratos, degustando o “plov” – o prato nacional – em um antigo palacete do bairro judaico, e assistindo a um show de danças tradicionais no pátio de uma das antigas escolas islâmicas.
Khiva
Antigamente, a rota de Bukhara para Khiva durava mais de um mês. Hoje, levamos 6 horas através do misterioso deserto vermelho “Kyzyl-Kum” . Em Khiva, também Patrimônio da Humanidade pela Unesco, é onde mais nos sentimos em um filme de época com as muralhas muito bem preservadas do Itchan Kala – o centro medieval com torres e fortificações. A cidade foi a capital de um Khanato que se manteve independente até ser conquistada pelos russos czaristas, para quem fornecia escravos turcomanos, no séc. XIX.
Ao circular pela cidade murada com palácios, mausoléus, mesquitas e madraças de adobe e ladrilhos, voltei a me impressionar com o multicolorido minarete de Kalta Minor, com seus ladrilhos brilhosos em uma bela composição de tons de azul, verde e tons de areia.
Destaco o Palácio de Tash-Khovli, residência de verão dos khans de Khiva, construído em meados do século XIX, o Mausoléu de Pahlavan Mahmud, um talentoso poeta e sábio filósofo do século XIV, e a Madraça Allakuli Khan, uma das maiores escolas religiosas já́ existentes no país – um dos melhores exemplos da arquitetura medieval da dinastia Khorasan que controlava a região.
Um grand finale para uma viagem de recordações e redescobertas!
Uzbequistão Passado & Futuro
O Uzbequistão sempre me impressiona pelo seu marcante legado histórico e arquitetônico. Até as Grandes Navegações, no século XVI, definirem novas rotas para o comércio com o Oriente, o grande eixo comercial era a Rota da Seda, que cruzava a região pelas lendárias cidades de Samarkand e Bukhara – com seu conjunto urbano medieval que nos transporta ao passado.
Gradualmente, a Rota da Seda perdeu seu objetivo e seu comércio desapareceu. Quatro séculos depois, embora a Rota da Seda tenha perdido seu papel de corredor de transporte, muitos dos oásis se tornaram cidades movimentadas com bazares repletos e os azulejos azuis dos minaretes não perderam o brilho.
Desde 1991, com o colapso da União Soviética, as linhas das ferrovias locais começaram a se conectar com os trilhos das Ferrovias da República Popular da China – a nova potência econômica ávida por gás, petróleo e minerais para sua indústria e de mercado para seus produtos.
Em setembro de 2022, algumas semanas antes da chegada de nosso Grand Tour Trip Travel, Samarkand foi a sede do encontro de cúpula da Organização de Cooperação de Shangai, com participação de Putin e Xi Jinping. Uma mostra da importância da região e da implantação da Nova Rota da Seda que retoma o papel da Ásia Central como rota comercial e energética entre a China e a Mesopotâmia e Oriente Médio. Acompanhem os próximos capítulos, com o retorno dos holofotes para a Ásia Central, que por quase dois milênios foi o eixo principal da lendária rota da Seda.
Onde ficar em Uzbequistão
TASHKENT
HOTEL HYATT REGENCY
SAMARKAND
SHAXZODA ELITE HOTEL
BUKHARA
HOTEL SHAHRISTON
KHIVA
FAROVON HOTEL