É claro que, porque elas são mulheres, estão aqui nesta seção da revista.
É claro que, porque elas são mulheres, arrumaram uma forma de se fazerem presentes e confortar quem estava precisando no momento de enorme dor que atingiu a cidade e o Estado, nas enchentes de maio.
É claro que estas mulheres se uniram, também, para ajudar umas às outras.
E tinha café, é claro.
A cidade inundou. Faltou luz, faltou água, o frio irrompeu, a terra desceu e esparramou lama e medo. Para essas mulheres, não faltaram coragem e sensibilidade para fazer café e colaborar umas com as outras – e todas com todo mundo.
Roberta custou a acreditar que a água atingiria o La Cabane, a cafeteria que é seu empreendimento e seu lar no bairro Floresta (ela mora no andar de cima). Ouviu os alertas de amigos e clientes a respeito da inundação e decidiu subir os equipamentos para o segundo andar; colocou pallets embaixo da geladeira e sob o piano de família, atração do lugar. Deixou a “casinha”, como chama carinhosamente a sua cabana, sem até agora encontrar uma definição onde caibam a incredulidade, o desterro e o vazio que a tomaram por inteiro. Roberta é advogada especializada em resolução de conflitos e gestão de crise, morou em diferentes lugares até aterrissar de volta a Porto Alegre, quando então decidiu empreender com a cafeteria. Uma mulher de opiniões firmes que acredita que os encontros, especialmente regados a café, afeto e bom humor, dão sentido à jornada. Nesse dia inesquecível, saiu com água até os joelhos, a gata no colo, umas mudas de roupas e foi abrigar-se no apartamento de amigos. Só voltou 20 dias depois.
Ali perto, Stéfani há um ano iniciara a torra dos cafés especiais no Abuela – a cafeteria que tanto sonhou em estabelecer durante os estudos de Arquitetura na universidade. O sonho da Stéfani se concretizou quando formada: criou esse lugar onde são servidos cafés especiais combinados com comidinhas exclusivas e inclusivas — um conforto de casa de avó mesmo, com cookies, pão de queijo (de castanha), tortas doces e salgadas veganas, sem glúten e sem lactose. O cookie de chocolate vegano 70% cacau com raspinhas de laranja é um hit da casa. A arquiteta desenhou o projeto, a identidade visual do lugar. Gian, o noivo e sócio, administrador de empresas, é responsável pela gestão e a torra dos cafés, que selecionam entre produtores do país e torram no Abuela. A máquina torrefadora foi a primeira preocupação quando a água apareceu na rua, mas como fica sobre um pedestal mais alto, estava a salvo. A cafeteria parou de funcionar, sem água para o serviço, com a inundação alcançando a porta. Foi preciso fechar a casa, retirar cafés e alimentos para não perdê-los e ficar 28 dias fechados.
No Mercado Público de Porto Alegre, a Baden comemorava a nova cafeteria inaugurada no segundo andar do prédio símbolo da cidade. Depois de seis meses de obras, reformas e treinamento da equipe, a marca pioneira no serviço e torra de cafés especiais para os gaúchos abriu as portas com muitos sabores e itens para café com ilustrações do Mercado, feliz com a conquista. Contratou um time de baristas dedicados a atender o público e explicar as características do café especial, oferecer os produtos e, ainda, estimular a experiência com os grãos e métodos de extração. No terceiro dia abertos, Carol não conseguiu chegar ao Mercado para trabalhar: foi avisada pelo celular que o piso térreo já estava alagado. Carol é administradora, sócia do marido, Guert, nos negócios de torrefação e cafeteria iniciados há 12 anos. Uma mulher serena, resiliente e corajosa, mãe de um casal adolescente. Só o que pôde fazer, naquele momento, foi dar meia-volta e administrar a crise na unidade Baden Torrefação, no bairro distante da enchente. Retornou depois de 40 dias para avaliar os prejuízos.
Kerlen não estava na cidade quando Porto Alegre foi invadida pelas águas e não conseguiu regressar do evento Women On Top, que participava a convite da Sonata Brasil – o aeroporto Salgado Filho já estava fora de operação, inundado. O encontro anual de lideranças e grandes executivas é organizado pela jornalista Ana Paula Padrão e recebeu 1.500 líderes do Brasil e do mundo em São Paulo. Lá mesmo, as articulações de ajuda ao Rio Grande do Sul foram iniciadas e formou-se um grupo com 40 empresárias gaúchas para ajudar o Estado. A advogada Kerlen Costa, sócia do marido Eurico no Café República, entrou em ação. Kerlen é especialista em Direito do Trabalho Empresarial, master em Business Administration, uma liderança em gestão, empreendedorismo e inovação, ativista dos direitos das mulheres. No República, a água alcançou o primeiro dos três degraus de acesso, mas não invadiu o estabelecimento. Ainda assim, foi preciso lacrar as portas, mover maquinário, móveis e utensílios para o alto, retirar os produtos perecíveis e fechar as portas – sem água, sem acesso à rua.
No miolo do bairro Auxiliadora, longe da enchente, Emanuelle mantinha de pé a operação do Brio Coffee Stand, a microcafeteria que fundou em 2019 em sociedade com o marido Bruno. Esse modelo de negócio, tipo grab & go (pegue e leve), aberto de segunda a sexta e em dois sábados ao mês, era o desejo da administradora de empresas de trabalhar com cafés especiais – uma cafeteria “de janelinha”, como ela descreve o seu empreendimento. O formato pequeno cresceu e ganhou uma bancada com quatro lugares e duas mesinhas na calçada, quando não chove. Manteve o foco no delivery dos cafés de vários métodos, torrados por torrefações de Porto Alegre, e nas comidinhas de produção própria: brownies, muffins, prensados de pão de queijo, brigadeiros. Só que ela sentiu a queda no movimento, com casas e escritórios fechando pela enchente, e mais: sentiu o sofrimento que a catástrofe impôs a todos.
Juliana, na Zona Sul da cidade, vivia o mesmo sentimento: preocupada, tensa, ainda que a salvo – ela e o Limão Bergamota, o espaço que fundou em meio à pandemia para receber o público com almoços, cafés e bate-papo. Juliana é uma mulher com o propósito de conectar pessoas e ações, a natureza e produtores, a mesa e a colaboração. Por anos trabalhou como executiva em grandes corporações, mas sentia falta do tempo para curtir a família, sua casa, seu bairro, do tempo em que velejava no Guaíba. É esse o astral no Limão: aconchego, alimentos frescos e naturais, comida inclusiva (vegana, glúten e lacto livre), cafés especiais e ela, Juliana.
O que acontece imediatamente é história. Juliana convidou Roberta para um collab Limão-La Cabane com comidinhas de um e cafés de outro e muita gente para apoiar e contribuir – sucesso para ambas; Kerlen, de volta ao café, junto com o marido e equipe, arrecadaram e distribuíram bens – geladeiras, fogões, colchões –, estruturaram três abrigos femininos e no Dia das Mães, uma semana depois do caos, estavam com mães e filhos aquecidos e com muito café – também criaram um kit com três especialidades destinando a venda aos abrigos; Emanuelle trouxe para o balcão do Brio os cafés, os cookies veganos e a garra de Stéfani, do Abuela, para collabs aos finais de semana – encheu a janela e calçada, mantendo a chama acesa; Carol e a equipe da Baden torraram e moeram cafés para levar aos socorristas nos resgates, receberam voluntários carregando térmicas com o café filtrado especial para os abrigos e, na limpeza do Mercado, subiram à cafeteria e atenderam somente os trabalhadores, servindo café quente e confortador. Coragem, fé, solidariedade e café nunca faltaram – porque eram elas, mulheres que amamos.