A noite chega mais cedo a 545 quilômetros do continente. A temperatura da areia tem importante papel na vida dos que estão prestes a nascer. Se os termômetros marcarem acima dos 30°C, logo este local estará repleto de fêmeas. Abaixo dos 29°C, os machos estarão em maioria. Chegou a hora da verdade. Sob a claridade da lua, os mais de 100 ovos de cada ninho começam a eclodir. Os novatos, no primeiro contato com os grãos macios do litoral, precisam rastejar em direção à água. Não há tempo para brincar nesse novo mundo. Os predadores se aproximam. E vai ser um massacre. Os destemidos que atingem o mar nem olham para trás. Mesmo no paraíso, sobreviver é exceção. Estima-se que a cada 1.000 filhotes apenas 1 ou 2 chegam à fase adulta. Daqui a 30 anos, as tartarugas marinhas verdes retornam a Fernando de Noronha, na praia do Leão, para dar continuidade à espécie.
Embora não tão badalada como outras de Noronha, a praia do Leão tem uma das vistas panorâmicas mais incríveis da ilha. No horizonte, o turquesa profundo do mar de fora se une ao tom mais claro da imensidão do céu. É nesta paisagem que se encontram as ilhas da Viúva – referente às aves viuvinhas – e do morro do Leão, o qual dá nome à praia pelo formato do animal marinho deitado e pela fenda que emite som similar à de um rugido. Próximo da costa, piscinas naturais cristalinas contrastam com a paleta multicolorida dos diversos peixes que ali habitam.
O arquipélago de Fernando de Noronha é formado pela ilha principal – a única habitada, com cerca de 2.600 moradores nos 17 quilômetros quadrados de área – e mais outras 20 ilhotas, rochedos e lajedos, totalizando 26 quilômetros quadrados. O nome faz referência ao português Fernão de Loronha, financiador da missão de Américo Vespúcio, que desembarcou em 1503. O motivo da mudança gráfica para “Noronha” ainda é desconhecido. Por mais de 200 anos, a ilha foi utilizada como presídio para adversários da coroa portuguesa e, posteriormente, para contestadores de Getúlio Vargas durante o Estado Novo. Pela necessidade de um ponto estratégico de defesa nacional durante a Segunda Guerra, a ocupação foi desativada em 1942. Hoje, o território que pertence a Pernambuco prende turistas pelo encanto.
O arquipélago é formado pela ilha principal e mais
outras 20 ilhotas, rochedos e lajedos, totalizando
26 quilômetros quadrados de pura beleza
Mais íngreme pela proximidade com a Linha do Equador, a inclinação do sol castiga os moradores e turistas da “Esmeralda do Atlântico”. As caminhadas com subidas e descidas por entre as pedras são comuns no percurso até a areia. E elas podem ser bem torturantes. A Baía do Sancho que o diga. Para acessar a praia eleita mais bonita do mundo por quatro vezes, é preciso vencer 208 degraus de uma escada de bombeiro vertical dentro da fenda de uma rocha. Apertado, desagradável e angustiante. Com os caranguejos espiando pelas cavernas. O suor escorre pela testa. A boca fica seca. O pé arde na areia. O esforço logo é recompensado à primeira vista da beira-mar. A paisagem não se enquadra numa foto e nem a melhor das lentes é capaz de representar o que os olhos guardam para uma vida toda. O acesso do Sancho é inviável para idosos, pessoas com deficiência ou claustrofóbicos. A única alternativa é a entrada via mar, pelo catamarã, num passeio que vale cada segundo.
As formações rochosas são como nuvens. Nos permitem enxergar o que estiver ao alcance da criatividade. Como uma múmia na Ponta da Sapata e um gorila no Morro do Pico. Esse segundo, com 323 metros de altura, pode ser contemplado em diferentes ângulos de qualquer ponto da ilha. Por conta do desgaste causado pelo homem e pela natureza, hoje só é permitido escalar até o morro do Piquinho, atual vista mais alta de Noronha. O local divide as praias da Conceição e Boldró. A primeira é sob medida para passar o dia e, quando o pôr do sol chegar, o Fortinho do Boldró tem a vista – e a música – mais incrível para o happy hour. De frente para o Morro Dois Irmãos, cartão-postal de Fernando de Noronha, na deliciosa Baía dos Porcos.
Na vizinhança, a Cacimba do Padre é conhecida pelos campeonatos de surfe de alto nível. Os restaurantes “Abençoado” e “Cacimba Bistrô” também não deixam nada a desejar. Assim como o alto-astral do “Bar do Meio”, na Praia do Meio, que se encontra entre a Conceição e a praia do Cachorro. Essa última, junto com a do Boldró, pode ter as marés mais traiçoeiras por conta do swell, fenômeno natural que faz o mar ficar revolto. O ideal é visitar Fernando de Noronha no período de agosto a setembro, após as chuvas do inverno, quando a ilha está florida, as pedras da beira estão soterradas por areia e o repuxo é brando.
Noronha é terapêutico. O primeiro mergulho nessa água benta acalma os batimentos. Alivia o stress. Libera endorfina. De barriga para o céu, boiando de braços abertos nas marolas das ondas, o tempo simplesmente para. É quase possível ouvir os próprios pensamentos. Quase! O primeiro estouro te traz de volta para a realidade. Os olhos se abrem no impulso com o respingar das gotas no rosto. O segundo barulho desconhecido faz o corpo levantar em alerta. Já de pé, o ingresso de camarote para a uma caçada exuberante. E de quebra, uma aula de aerodinâmica. Como um disparo de revólver para o alto, o atobá sobe em movimento retilíneo e despenca em queda livre. A ave, com bastante gordura entre as penas, consegue atingir até 17 metros de profundidade. As fragatas, ladras sorrateiras com envergadura de 2 metros, aproveitam a habilidade dos vizinhos para – também – garantir o almoço.
Nem precisaria de tanto esforço. Os cardumes de sardinhas saltam desesperados em direção à praia. Péssimo sinal. É hora de sair da água. Quando a segunda onda cristalina se levanta, lá está o motivo de tanta agitação. A mancha de um metro e meio arrepia até a espinha do mais corajoso dos humanos. O tempo volta a correr. Os pensamentos fogem da cabeça. O coração sobe até a boca. Libera adrenalina. O dono da praia chegou para o banquete. Os tubarões-lixa, limão e, eventualmente, os tigre estão por todas as baías de Fernando de Noronha, sem exceção. O primeiro encontro, sem dúvida, é congelante. No entanto, esses cartilaginosos com três camadas de dentes fazem questão de nos lembrar a palavra de ordem da ilha: equilíbrio. É preciso respeitar o ecossistema e sua cadeia alimentar. As pessoas não fazem parte e não devem, em hipótese alguma, interferir nessa teia. Portanto, qualquer toque intencional em qualquer animal que seja é passível de multa caríssima.
A paisagem não se enquadra numa foto
e nem a melhor das lentes é capaz de representar
o que os olhos guardam para uma vida toda
O arquipélago é administrado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o qual cobra tarifas para o acesso às duas partes que dividem Noronha. A Taxa de Preservação Ambiental (TPA) diz respeito à Área de Preservação Ambiental (APA) e tem o pagamento obrigatório, no desembarque ou on-line, para todo visitante de acordo com o número de diárias. A outra taxa é opcional e permite o acesso ao Parque Nacional Marinho (Parnamar), que corresponde a 70% da ilha principal, incluindo as praias do Sancho, do Leão, Sueste e Atalaia. Os impostos ambientais podem parecer caros antes da viagem, mas se justificam pelas condições do ecossistema. O preço pago vai ser a última coisa que será lembrada na volta para casa.
Há outras memórias, porém, que nem com esforço seria possível esquecer. O relógio marcava 4h da manhã quando um exército, já alimentado, rumava a Noronha. Na direção contrária, canoas polinésias – ou havaianas – começariam a entrar na água menos de uma hora depois. Os dez canoeiros, sem sequer saber os nomes uns dos outros, tentavam remar no mesmo ritmo da dupla que ocupava a dianteira. O instrutor, na parte de trás, sentia a brisa enquanto contava curiosidades sobre cada ponto avistado. Cadência e constância, pedia. A canoa se chocava contra as ondas que cruzavam de um lado para o outro. Os remos custavam a entrar na água na mesma sintonia. Em alto-mar, no entanto, o pelotão se aproximava a 10 quilômetros por hora mantendo a uniformidade do grupo. Disciplina. A união garante a segurança de todos. Antes de o sol aparecer, ainda com a coloração rosada no céu, as primeiras tropas de golfinhos-rotadores já passavam como torpedos por debaixo dos barcos. As seguintes giravam no ar e caíam como bombas na baía cristalina da praia do Porto. Enérgicos e exibidos, os mais de 300 animais proporcionaram um espetáculo.
A Baía dos Golfinhos virou refúgio para os rotadores, terceira espécie de golfinho mais abundante do mundo. Esses mamíferos vivem em águas oceânicas tropicais no Atlântico, Pacífico e Índico. São animais extremamente sociáveis, com diferentes sistemas de comunicação visual, tátil, químico-sensorial, sonoro e por atividade aérea, resultando nas piruetas que tanto agradam aos turistas. Durante o PlanaSub, mergulho com snorkel e prancha hidrodinâmica rebocada pelo barco, foi possível ouvir os assobios característicos deles enquanto nadavam próximos aos mergulhadores. Fascinante.
O último gole de ar puro começou a fazer falta cedo. No terceiro metro abaixo da superfície, o que vinha do regulador já não parecia oxigênio ou nitrogênio. Tinha gosto de desespero. A ansiedade queria mergulhar de cilindro. Inspira, expira. Na segunda tentativa, respiração no ritmo adequado e olhos bem abertos para o novo mundo que se apresentava. Colorido. Inesperado. Surreal. Movimentos vagarosos para não dispersar a vida marinha que simplesmente ignora a presença humana. São como astronautas que flutuam na imensidão de um céu inteiro abaixo de nossos pés. Cada experiência é única. Com sorte, os protagonistas darão as caras. A tranquilidade do tubarão-lixa. A camuflagem do polvo. A persistência da tartaruga marinha. Lutou pela vida ao nascer e hoje pode nadar tranquilamente entre as pedras. Que sirva de espelho para nós. Mas que, diferentemente dos seus filhotes, não tenhamos que esperar os mesmos 30 anos para voltar a Noronha.