Imersão na natureza intocada entre baías e
enseadas isoladas em pleno círculo polar
Em 2019 naveguei pela Antártica, o continente gelado, e planejava no ano seguinte explorar o outro extremo do planeta, quando a pandemia nos impôs um longo período de abstinência em viagens internacionais. Com a flexibilização das restrições e a reabertura da Noruega ao turismo, em junho de 2022 finalmente realizei a tão ansiada viagem ao círculo polar Ártico. Uma experiência única a bordo do Silver Cloud Expedition, um cruzeiro que combina na medida certa conforto e aventura, na exploração das áreas mais remotas da Terra. Embarcamos em Tromso, no norte da Noruega, de onde navegamos por dez dias até as ilhas Svalbard, chegando a menos de mil quilômetros do Polo Norte. Uma imersão total em uma natureza dramática e intocada, por entre baías e enseadas de ilhas isoladas em pleno círculo polar.
Oslo
A viagem começou por Oslo, a mais antiga capital escandinava, fundada por Harald Hardrada no século XI e rodeada por montanhas no centro de um fjord que se estende por 70 milhas. Ficamos instalados no coração da cidade, no hotel Continental, com sua renomada gastronomia e em frente ao Teatro Nacional, um dos prédios icônicos da cidade, com a estátua, na frente, de Ibsen, o maior dramaturgo escandinavo.
Aproveitei os dias em Oslo para visitar os prédios novos na região de Bjorvika, em torno da emblemática Ópera da cidade, um prédio contemporâneo que lembra um iceberg mergulhando no fjord de Oslo. Visitamos a recém-aberta Biblioteca Nacional Deichman e passamos uma tarde no museu Munch, inaugurado em 2021, o maior museu do mundo dedicado a um único artista, com grande parte do acervo de Munch. Uma agradável coincidência foi a inauguração durante nossa estada do novo Museu Nacional, onde além de uma sala dedicada a Munch, mergulha-se nos demais mestres da pintura norueguesa.
Para entrar no ritmo do destino a ser desvendado retornei ao museu FRAM, onde se visita a embarcação épica que explorou o Ártico no final do séc. XIX. Um mergulho na aventura do explorador polar Fridtjof Nansen, que a bordo do FRAM ficou preso, em 1893, no gelo do ártico e seguiu em trenós, esquis e caiaques, chegando próximo do Polo Norte, a 86o de latitude Norte, só retornando a Oslo após três invernos no Ártico. FRAM foi também utilizada por Roald Amundsen, que liderou a 1ª expedição a chegar ao Polo Sul, em 1911. Inspirados por esses grandes exploradores noruegueses, seguimos nossa expedição rumo Norte, voando até Tromso, já no círculo Ártico, de onde navegamos até a calota polar.
Tromso
O colorido de seu casario em madeira junto ao fjord compõe um conjunto cênico dos antigos povoados de pescadores entre as montanhas e o mar. Adorei caminhar, sem compromisso, por sua marina, píer e passarelas junto ao fjord, fotografando os prédios e veleiros dessa movimentada cidade de 70 mil habitantes, com 20% de sua população composta por universitários de todo o norte do país. Na feira artesanal na praça central comprei um blusão de lã de merino para enfrentar melhor o “verão” nórdico.
Tromso, Noruega: o colorido do casario
de madeira entre a montanha e o mar
Artic Expedition
A partir de Tromso navegamos a bordo de um quebra-gelo com toda estrutura para a exploração polar. Ao longo do trajeto acontecia um ciclo de palestras com biólogos, geólogos e antropólogos ligados aos temas que vivenciávamos diariamente. As expedições terrestres e marítimas, em botes menores, eram acompanhadas por especialistas coordenados pelo ambientalista Oscar, natural das ilhas galápagos.
Ao retornarmos ao navio uma equipe atenta a todos os detalhes, como o olhar do indiano Kailash, que cuidava da minha cabine, do tunisiano Ahmed, nas refeições, e da filipina Melissa com meu drink predileto de final de dia, embalado ao som de bossa-nova do paulista Elder no violão. A “casinha” sobre águas ainda oferecia uma refinada gastronomia regada a bons vinhos, e até academia para queimar os excessos. Tudo compondo para deixar as melhores lembranças dessa vivência ártica, como os esguichos de um grupo de baleias que nos acompanharam já no primeiro dia de navegação.
Cabo Norte
Nossa primeira escala foi no extremo norte da parte continental norueguesa. O biólogo Marcel, da Costa Rica, nos conduziu com um zodíaco, os barcos infláveis para desembarque nas ilhas e navegação nos fjords, para observação de pássaros na Reserva Natural Gjesvӕrstappan. Composta por uma centena de ilhas e rochedos, trata-se de uma das maiores e mais acessíveis áreas de nidificação da Europa para aves marinhas do Atlântico, com um milhão de ninhos a menos de 10 milhas náuticas de Nordkapp.
Nos paredões rochosos, sobrevoando nos céus e mergulhando na nossa frente, papagaios-do-mar, mergulhões, gannets do norte, águias de cauda branca, skuas do Ártico, patos, shags, razorbills e cormorões, entre tantas outras espécies. Um mundo de aves que aproveitam o verão no Ártico para reprodução, migrando depois já com seus filhotes para o sul. A tarde desembarcamos na ilha de Magerøya, com seu pitoresco povoado de pescadores de Skarsvag. De onde atravessamos colinas, cobertas pela vegetação rala de tundra, com renas pastando.
O povo sami, também chamado de lapões, vive na região ártica nórdica e russa, e paramos em um pequeno acampamento onde o jovem da comunidade nos falou da importância dos rebanhos de rena para seu povo, que não tem mais a vida nômade de outrora, mas que ainda tem duas bases de pastoreio – de verão e de inverno. Seguimos até o Cabo Norte, no topo de uma falésia, o ponto mais setentrional da Europa. Me surpreendi com a grande estrutura do centro de visitantes naquele local isolado onde os mares Norueguês e Barents se encontram. Assistimos aí em uma tela 180º um filme com toda magnitude do Ártico ao longo das quatro estações, nos preparando para o que veríamos nos próximos dias. Além de uma ótima cafeteria, loja de souvenirs e até correio – de onde enviei um cartão-postal “do fim do mundo” para minha filha Elena, que compartilha a paixão pela natureza e aventura.
Observação da imensidão gelada
do Ártico no conforto do cruzeiro
Bear Island
A parada seguinte foi em Bear, a ilha mais ao sul de Svalbard, e que foi a primeira avistada em 1596, quando o explorador holandês William Barrents registrou em 1596 a existência do arquipélago. Toda a ilha é uma Reserva Natural, pois seus penhascos íngremes também abrigam milhares de aves marinhas em reprodução.
O ornitólogo brasileiro Bernardo, que nos apresentava as diferentes aves e seus ciclos migratórios, contou como o constante choque das ondas do mar molda cavernas e formações rochosas irregulares que levaram ao naufrágio do navio russo Petrozavodsk, que se deteriorava em nossa frente, quando nosso zodíaco ficou preso em rochas rasas. Ao acelerar para nos liberar levamos um bom banho das gélidas águas do Ártico, antecipando o retorno à segurança do SilverSea com um delicioso chocolate quente para nos reaquecer.
O arquipélago de Svalbard
Após mais um dia de navegação chegamos na parte sul de Spitsbergen, a maior ilha do arquipélago, onde fizemos o primeiro trekking, subindo uma encosta para apreciar a vista do alto do fjord circundado por montanhas nevadas. Svalbard, localizado entre 74º e 81º latitude Norte, cobre 61 mil km2, sendo dois terços dessa área de preservação natural.
Nas nossas explorações em terra aprendemos mais sobre a história de Svalbard, que serviu como base para a indústria baleeira no século XVII, seguido de mineração do carvão e do ciclo de caçadores russos e noruegueses ligados ao comércio de peles nos séculos seguintes. Já no século XIX foi a base para a exploração marítima do Ártico e da corrida pela conquista do Polo Norte. Nas caminhadas passamos por restos de cabanas, caldeiras para extração do óleo de baleias e de minas que registram essa história.
Hoje, além da mineração, o turismo e a pesquisa científica são as maiores atividades do arquipélago. Svalbard é administrada pelo reino da Noruega desde 1920, por um tratado que dá direito a também outras 12 nações continuarem a explorar as poucas partes das ilhas que não sejam reserva natural. A população do arquipélago é de apenas 2.500 habitantes, dos quais 60% são noruegueses e 35% russos e ucranianos.
No norte de Svalbard, lugares como Magdalenefjorden e Hornsund oferecem vistas fascinantes de formações geológicas, montanhas escarpadas e geleiras espetaculares, como os glaciares Mónaco e Seliger.
Geleiras espetaculares, glaciares
e vida selvagem no Ártico
Vida selvagem
Ao visitar os dois extremos do planeta é inevitável comparações, e a península Antártica encanta mais. Seja pelas montanhas mais nevadas, seja pela quantidade de vida animal, com as imensas colônias de pinguins e focas, e pela navegação junto a baleias e golfinhos. No Ártico, a vida selvagem, tanto na terra como na água, é bem menos exuberante, mas com aves em maior abundância. Avistamos apenas algumas focas, mas em duas ocasiões pudemos observar um grupo de morsas, com suas imponentes presas de marfim, “lagarteando” na praia. Esses enormes mamíferos marinhos ficam ainda mais salientes por estarem agrupados e constantemente se acomodando entre si, e se fazendo ouvir com seus grunhidos que soam estar reclamando de falta de espaço.
Mas a expectativa maior era por encontrar um urso-polar, belo e forte. Tanto em navegação quando em terra a equipe de exploração esteve sempre atenta a sinais do “rei do Ártico” – o maior mamífero carnívoro do planeta.
No sétimo dia fomos premiados com dois ursos em uma ilha em frente ao nosso cruzeiro, um na água e outro no trecho de praia, inclusive com direito a uma caçada, sem muito esforço, a uma rena que estava pelos arredores.
Caiaque
Tivemos a possibilidade de observação da natureza de diversos pontos de vista, seja no conforto do cruzeiro na sacada da cabine, no lounge envidraçado ao som do piano ou do alto do deck aberto. Bem como nas caminhadas em terra ou nos deslocamentos na água, cada qual com diferentes perspectivas. Mas a forma que mais me fez sentir integrado àquela natureza majestosa é no deslizar silencioso de um caiaque, no ritmo da remada, sentindo a brisa gelada. Ao estar ao nível da água, nas margens de um fjord, cercado por montanhas rochosas, íngremes e nevadas, se sente toda a imensidão do Ártico. Ainda mais ao cruzar por icebergs polimórficos azuis com glaciares ao fundo. A percepção nítida da fragilidade humana frente à dramaticidade e força da natureza.
A força elementar do Ártico é evidente: neve, gelo e água.
É nítida a fragilidade humana frente à força da natureza.
O Ártico em transformação
A força elementar do Ártico é evidente: neve, gelo e água. Mas em transformação. As geleiras que ainda cobrem 60% da superfície do arquipélago de Svalbard estão retrocedendo em ritmo acelerado. Enquanto em nossa experiência na Antártica caminhávamos sempre em terrenos cobertos de neve, no Ártico, apesar de latitudes mais elevadas, percorríamos trilhas de pedras soltas onde já se desenvolve uma vegetação incipiente de musgos e tundra, com as geleiras e montanhas nevadas somente ao longe.
Os efeitos do aquecimento solar são marcantes no Ártico, onde a redução do volume e da superfície de gelo implica menor reflexão dos raios solares e consequente maior retenção térmica e descongelamento, efeitos que se retroalimentam. Mudanças que afetam a fauna, ao longo de toda sua cadeia alimentar, e ao planeta como um todo.
No final do cruzeiro navegamos um dia inteiro em direção norte até encontrar as bordas da calota polar – a massa de gelo que se estende desde o Polo Norte, e que nessa época e local chega até 80.50º latitude norte, o ponto máximo a que chegaríamos –, a menos de 1.000 km do Polo Norte. O glaciólogo a bordo, ao descrever a camada de gelo que se estendia sem fim a nossa frente, nos advertiu que sua espessura já é a metade do que foi há meio século, quando se iniciaram as medições.
Se a beleza natural é menos marcante que na Antártica, a constatação da redução das geleiras no Ártico impacta mais na conscientização da importância em reduzirmos a emissão de gases formadores do efeito estufa, que ocasiona o aquecimento global e as suas dramáticas consequências ao planeta.
Observando essa massa contínua de gelo, do aconchego do SilverSea, me lembrei de Nansen e Amundsen, e seus feitos heroicos em desbravar este mundo gelado nas precárias condições de mais de um século atrás. Minha admiração cresce ainda mais pelos precursores da exploração polar, e que cabe à nossa geração preservar para que as próximas ainda possam se encantar com o mundo do urso-polar e tudo que o cerca, que protege ele e o planeta da extinção.
Longyearbyen
Terminamos a navegação em Longyearbyen, a única cidade do arquipélago, com 2.400 habitantes, que abriga o maior porto e único aeroporto, de onde começamos nossa trajetória para casa. Localizada às margens do Isfjorden (Fiorde de Gelo), ela é a sede da administração norueguesa do arquipélago, e abriga a UNIS, a universidade mais setentrional do planeta. Nos arredores fica o Banco Mundial de Sementes, que em sua câmara fria armazena um milhão de sementes de 6 mil espécies de plantas, e visa com essa preservação salvaguardar a produção regional e global de alimentos para o futuro.
Extremos
Para quem, quando garoto, desbravava o mundo nas páginas de Júlio Verne, chegar aos extremos da Terra foi a realização de sonhos juvenis.
Um mundo de gelo e neve, com os simpáticos pinguins ao sul e o poderoso urso-polar ao norte, focas e morsas, as enormes baleias e pequenos pássaros. Todo o fascínio de uma natureza imponente e intocada, com suas montanhas e geleiras, nas regiões mais isoladas do mundo.
A agitação das águas, o frio intenso, a falta de verde e excesso de branco, aridez e vento, e todos os demais desafios à ocupação humana, mas com a pesquisa científica acontecendo tanto de um lado quanto no outro do globo, atenta às suas transformações e nos dando alertas para cuidarmos melhor deste nosso fantástico e diverso planeta. Foi muito bom ser um observador temporário dessas regiões que devem permanecer selvagens, onde apenas deixamos marcas de passos e de onde somente trazemos o registro de imagens intocadas.
Para mais informações: triptravel.com.br