Nunca havia pensado antes em usar o adjetivo perfeita para o substantivo dor. Posso recorrer à memória para tentar catalogar as dores que senti desde que a consciência me acode. Foram muitas, mais do espírito que do corpo. Talvez a morte do meu irmão possa ser chamada de perfeita – porque insuperável –, pela fundura abismal em que me jogou.
Mas não as dores do corpo. Nenhuma me ocupou tanto quanto a que tomou conta do Ricardo Lísias. Escritor com uma série de romances e projetos narrativos de grande interesse – um dos mais destacados escritores do país neste momento, para mim –, ele vem de publicar Uma dor perfeita, pela editora Alfaguara. O tema é sua dura experiência com a covid.
Agora, no momento em que escrevo, a moléstia anda relativamente mansa, disseminada de modo inédito mas muitas vezes representando algo como uma gripe forte. Mas Lísias conta de uma infecção antes da vacina. Foram muitos dias de UTI, que se seguiram a uns dias de negação ou pouco-caso, naqueles momentos iniciais em que a pandemia ainda parecia uma coisa remota e em que o governo federal exerceu seu nefasto papel, não apenas negando a gravidade do evento mas atrapalhando a compra de vacinas e até mesmo, céus, debochando da dor alheia.
“Dor perfeita”, então, foi o modo como se formulou, na mente e na sensibilidade do autor, a experiência direta, viva, física e espiritual, do mal. Uma dor que mastigava seus músculos e o fazia, entre outras mazelas, perder o controle do corpo. Dias e dias na UTI, indo e vindo entre a consciência aguda e o delírio febril, sempre bem cuidado – mas o que é exatamente estar bem cuidado, nesses casos?
Com dor controlada, certo. Com atenção dos enfermeiros e médicos, sim. Mas a vida da gente é mais que isso. É, por exemplo, o futuro: o futuro é uma presença grande em qualquer presente.
(Eu mesmo uma vez experimentei essa realidade óbvia, quando esperei uns dez dias pelo resultado de um exame, que poderia ser terrível ou libertador – por sorte foi libertador. Nesses dias, eu me obriguei a parar de pensar no futuro, porque realmente não sabia o que poderia suceder. Foi então que contabilizei a quantidade de futuro que povoa cada presente.)
Lísias tem um filho pequeno, com quem tentava jogar algum desses joguinhos digitais, e nem sempre conseguia. Chamadas de vídeo foram várias vezes evitadas, para que em casa não se soubesse do estado em que ele se encontrava.
O relato de Lísias vai compondo isso tudo, o presente opressivo da UTI com a dimensão cotidiana, interrompida mas sempre à espera, ao menos enquanto houver esperança, e ainda com o passado, sua relação com seu pai, motivo de uma tensão existencial que se converte em energia narrativa.
Há momentos de grande beleza, que não reproduzo aqui para não diminuir a experiência da leitura. Um grande livro, uma memória que, sendo radicalmente individual, é também coletiva, de um tempo estranho que nos tocou viver
Celso Gutfreind
Às vezes, pode vir um verso e, como uma fagulha, acende algo em nós. Ou, em vez dele, uma imagem sem palavras, uma canção, um único acorde dela. E