
Passei o dia no campo. Que dia! Tem dia que vale uma vida. Esse valeu. Outro ar, outras cores, barulhos do bem, silêncio acolhedor. O verde da aurora resplandece. As águas do rio Uruguai brilham no crepúsculo. E no intervalo entre essas cores, antes da escuridão estrelada, o dia. Um único dia. Que dia! Um único dia vale uma vida inteira.
Bergamota na relva, carne em espetos de chão, salada fresca da horta. Detox de tudo. Nada fora do lugar. Pavões mostrando o que é uma beleza. Ou muitas. Pintinhos rompendo as cascas para viverem o tempo que lhes cabe. Mas há humanos e seus atos, às vezes, mancham os dias. As crianças maltratavam os bichos. Crianças livres, soltas, pequenas, sem a supervisão dos maiores. Como estava escrito em O Senhor das Moscas, do inglês William Golding. Batiam na ovelha guacha. No gato da casa. Nos cães do pasto. Nos bezerros. Dar pau, dar pau – gritavam, entre seus atos.
Parecia um passatempo para elas e virei o supervisor para que o tempo parasse com aquilo. Antecipava-me às maldades, mediador entre o sadismo precoce e os bichos indefesos. Virei, por um dia, o protetor dos animais. Trabalho árduo. De repente, aparece o pai de um dos meninos rurais. Um homem grande, como o seu bigode. Viva, um assistente de peso! Limites à vista, princípio da realidade para o desprazer. Qual o que!
O homem pilchado, de relho na cintura, trouxe um laço e ensinou os pequenos malvados a enlaçarem a ovelha. Enlaçaram e a arrastaram com seu olhar graúdo de medo. Tremia, a pobrezinha! Aguardei que o grande se retirasse para desenlaçar. Não foi fácil para os meus dedos urbanos. Fiz outro sermão para os pequenos. Surdos, eles se desvencilharam de mim e, sem que eu pudesse chegar em tempo, mataram um sapo. A pauladas, a pedradas, com crueldade, enfiando um galho em sua boca apavorada. Ali mudaram os barulhos do dia – um dia vale uma morte. Foi-se a cor do rio, o silêncio acolhedor, só a culpa ficou batendo. Ah, se eu chegasse um pouco antes…
Chamei os meninos, à noitinha. Não sentiam remorso? O sapo não tinha sofrido? O menorzinho não titubeou: – Sofreu não, tio, só peidou.
Riram todos juntos. E nem a apologia do humor de Freud ou Quintana conseguia salvar a humanidade, na véspera de pesadelos coaxantes.
Celso Gutfreind é Psicanalista e Escritor