O pai pode ser a lei e outros que tais importantes, em termos de valores, onde também entram as histórias que ele conta. Ouvi-las permite compor as nossas próprias histórias, e seguir contando. Trata-se de um valor digno da importância de uma lei. No caso, uma continuidade, com todas as diferenças a que se tem direito.
Entre as histórias do meu pai, uma se destacou e ecoa, anos depois de sua partida. Foi a do colar que nunca foi comprado. Ou, mais exatamente, a inacessível gargantilha de brilhantes. Pai e mãe passeavam no shopping quando, diante da vitrine de uma joalheria, os olhos do pai viram os da mãe arregalar-se como jamais havia visto. Paixão à primeira vista. Essa nem com ele, anos atrás, quando agora testemunhava aquele caso de amor entre a mãe e o colar ou gargantilha.
Estavam atrasados para o cinema (felizmente, declararia mais tarde), mas o ocorrido estava devidamente registrado e já não podia não ir adiante. Na semana seguinte o pai voltou sozinho ao shopping e à joalheria, onde ficou sabendo a quantidade de brilhantes aglutinadas no colar e a repercussão disso tudo no preço final da peça. Não, não poderia comprar.
Na semana seguinte da seguinte, no aniversário da mãe, o pai lhe ofereceu o buquê tradicional de flores e algum presente corriqueiro, desses que, além de úteis e agradáveis, podem ser pagos sem maiores consequências. A mãe gostou, mas achou estranha, ao lado do presente, a presença de dois cartões, um de feliz aniversário, e outro, de estacionamento. Foi quando o pai lhe explicou que aquele segundo cartão, posto ali de propósito, era a prova incontestável de que ele havia voltado ao shopping e tentado comprar a gargantilha, o que só não fizera devido ao alto preço.
A história foi para o folclore da família, mas vem viajando mais do que isso. O pai, afinal, não o fez de sacanagem ou forma cômica para provocar os risos que a história ainda hoje provoca em seus ouvintes. Ele o fez com muita seriedade e transmitiu algo ainda mais consistente.
Hoje, quando sofro alguma derrota na vida, eu a reviso focado em se fiz tudo o que podia ter feito para não perder. Se fiz, não a amargo e aceito como algo inevitável. No entanto, se me deparo com alguma displicência apontando para não ter tentado tudo o que me era possível, aí sim, eu me sinto muito mal. Mais do que derrotado, eu me sinto órfão. De pai.
Celso Gutfreind é Psicanalista e escritor