Ele era conhecido como Dr. Abruzzi. Eu o conheci no final dos anos Oitenta, na Emergência do Hospital Nossa Senhora da Conceição. Eu fazia plantão como residente do Serviço de Medicina de Família, e ele era contratado, já fazia algum tempo.
Fizemos uma amizade, em torno do interesse em comum por livros, filmes, arte em geral. E, sobretudo, formamos uma boa dupla para o atendimento de pacientes.
A gente se complementava, porque, de certa forma, havia dois tipos de demandas, nas urgências. Uma, com diagnósticos agudos, precisava de uma conduta protocolar, com intervenções medicamentosas ou algum procedimento complementar. Tratava-se, mesmo, de salvar vidas. A outra abarcava angústias, tristezas – dores da alma, enfim -, ávidas por uma escuta.
Para as primeiras, Dr. Abruzzi era um gênio. Tinha a postos, na cabeça, cada protocolo e intervinha com maestria, rapidez e eficácia. E funcionava, mesmo nos diagnósticos mais graves, para os quais guardava uma passo a passo, baseado em evidências, quando a prática da medicina ainda nem falava delas. Dores, febres, desmaios, vômitos e outros males físicos encontravam um mapa de resoluções em sua cabeça. Dr. Abruzzi era mesmo um precursor. E salvava vidas.
Já as dores da alma, menos evidentes, eram comigo, por serem vagas, sem protocolo, em seu único passo possível, que era a escuta. A escuta atenta. A escuta empática.
A escuta dolorida de uma dor.
Dr. Abruzzi tinha outra capacidade impressionante. Identificava, atento à fila, se a demanda era uma ou outra, ou seja, se para ele ou para mim. Discernia pelo olhar da pessoa, pelo passo, pelo corpo, embora tivesse outros recursos mais pessoais como apregoar – e acertar – que mulheres de chambre ou bem penteadas eram casos para serem atentamente escutados. Baseado nas evidências dessa história, tornei-me psiquiatra, depois psicanalista.
No dia de ontem, uma amiga passou muito mal e precisei levá-la para a Emergência do Conceição. Fazia trinta anos que eu não aparecia por lá. Na chegada, perguntei pelo Dr. Abruzzi, sem saber se havia mudado de trabalho ou até mesmo se aposentando. Ele estava lá, trabalhando, normal e serenamente, com genialidade e protocolos. Salvando vidas.
Graças a ele, a Ana Paula foi muito atendida, o que incluiu medicação e um procedimento para debelar a sua pedra no rim. O reencontro com o Dr. Abruzzi foi emocionante, livros e filmes de um tempo relembrado. Só não encontro um protocolo para descrevê-lo. É vago, subjetivo, da alma, com chambre, escuta, penteado, como a parte que me cabia naquela fila.
Celso Gutfreind
Às vezes, pode vir um verso e, como uma fagulha, acende algo em nós. Ou, em vez dele, uma imagem sem palavras, uma canção, um único acorde dela. E