“O que a gente tem que aprender é, a cada instante, afinar-se como uma linhazinha para saber passar no furo da agulha que cada momento exige.“
João Guimarães Rosa
Quando a agulha encontra o tecido, e a linha desenha pontos que representam histórias de vida, cultura, sentimentos, o bordado livre ganha novas dimensões e se torna uma forma de arte. Longe de seguir desenhos predeterminados, o bordado contemporâneo é autoral, é registro afetivo, alinhava passado e presente, restaura memórias.
Assim, muito além de ser trabalho manual milenar ou forma de lazer, esse estilo usa pontos tradicionais sobrepostos livremente ou entrelaçados a fios de diferentes espessuras, produzindo efeito tridimensional nas peças. Como diz o nome, sem regras, sem limites, com os pontos passando para o tecido os estados da alma, as lembranças e as vivências.
O ato de bordar pode colocar cores no cotidiano, estimular o desejo de explorar novas formas de expressão, exercitar a criatividade, acenar para infinitas possibilidades, trazer tranquilidade em momentos conturbados.
Tantos significados ganha essa arte que chega a ser terapêutica. Em tempos de estímulos constantes, é uma atividade introspectiva que permite que a pressa ceda lugar ao tempo das memórias, o espaço ideal para a expressão da criatividade. Pessoas carentes de contato afetivo encontram conforto na reunião entre bordadeiras, em cursos ou grupos.
O Dr. Herbert Benson, professor de Medicina da Mente e Corpo de Harvard, fundador do The American Institute of Stress, explica que bordar pode provocar relaxamento idêntico à meditação. O pesquisador garante que, dessa maneira, reduz os batimentos cardíacos, os hormônios do stress e estimula relaxamento dos músculos e dos órgãos.
Além disso, bordar criativamente é uma forma de oxigenar o cérebro, estimular a memória, ativar conexões neurais, formar novas sinapses, o que beneficia a saúde mental. Também pode reforçar a autoconfiança, porque criar é arriscar, experimentar sem medo de errar, envolve o fazer, o desmanchar, o recomeçar e a satisfação de concluir.
Bordadoterapia
O que leva a prática a ser utilizada por psicólogos e psicanalistas como arteterapia é que auxiliaria as pessoas a viverem menos dolorosamente situações difíceis como a depressão e o luto, facilitaria expressar sentimentos, favorecendo a reabilitação e, ao mesmo tempo, possibilitando laços sociais e estimulando a autoconfiança e a alegria. Existem registros de soldados se utilizarem dessa arte como forma de tratar traumas pós-guerra.
Profissionais que utilizam a arteterapia avaliam que o processo de tecer equivale a ordenar, articular, organizar, entrelaçar, apropriar-se do fluxo criativo e existencial. O bordado em grupo agiria como um agente agregador e plural, fazendo com que pessoas diversas se sentassem em volta de uma mesa com tecidos, linhas e agulhas, e conseguissem falar de suas vidas e compartilhar um pouco de sua intimidade como se estivessem em um campo neutro no qual poderiam se despir de máscaras.
Além disso, a ideia defendida por Freud de que o inconsciente se expressa por imagens, como as originadas no sonho, levou à compreensão de que as criadas na arte são uma via de acesso privilegiada ao inconsciente, pois escapariam mais facilmente da censura do que as palavras. Ao trabalhar com agulha e linha, muitas pessoas encontram um espaço seguro para explorar e expressar as emoções de forma não verbal. O que é especialmente útil para quem tem dificuldade ou se sente desconfortável em usar as palavras.
O processo de bordar envolve a repetição de movimentos, o que pode ser muito meditativo. Isso ajuda a acalmar a mente e reduzir os níveis de estresse. Ao se concentrar no bordado, a mente pode se desligar das preocupações do dia a dia e dos pensamentos negativos, diminuindo a ansiedade.
Também pode ser usado como uma forma de contar histórias e compartilhar experiências. As pessoas incorporaram as próprias histórias e experiências nos projetos de bordado, permitindo que outras as vejam e entendam melhor suas perspectivas.
Força feminina
Na Europa, na época dos reinados, era comum, nos castelos, rainhas e damas de companhia bordarem brasões, armas, escudos em ouro e prata, em roupas e adereços, como atividade do dia a dia da nobreza. Da mesma maneira, as mulheres que viviam nos conventos tinham seus bordados, em trajes do clero e em ornamentos da igreja, reconhecidos como de alto padrão de luxo e beleza. Essa arte é ancestral, transmitida de mãe para filha. Como na produção de um quadro, a agulha faz as vezes de pincel, as linhas a tinta e o tecido a tela. Só assim, as mulheres podiam mostrar sua arte em uma espécie de galeria especial, seu lar.
Historicamente associado ao universo feminino, o bordado foi desacreditado como atividade intelectual, categorizado como um trabalho menor. Servia para manter as mulheres em casa, enquanto os homens tomavam decisões para o bem da comunidade. Clássicos da Literatura costumam mostrar jovens e mulheres recatadas, reclusas, dedicadas ao bordado de peças e enxovais. No passado, mocinhas casadoiras precisavam, necessariamente, saber costurar e bordar.
No entanto, os tempos mudaram. Muitas mulheres passaram a não mais aceitar o papel secundário, e o bordado ganhou novo sentido de expressão. Contemporâneo, livre, fez surgir grupos que utilizam a prática como força de reivindicação de conquista de espaço na sociedade. Bordar em grupo se tornaria um ato de resistência, de troca política feminina, de liberdade de gênero. Traria a sensação de pertencer a uma totalidade, uma maneira de subverter os papéis que lhes queriam impor. Nos tecidos, sentimentos expressos em linhas, com fios criando imagens, registrando cultura, hábitos, dores, afetos, revoltas e também alegrias, esperanças, amores.
É a sua vida que eu quero bordar na minha
Como se eu fosse o pano e você fosse a linha
E a agulha do real nas mãos da fantasia
Fosse bordando ponto a ponto nosso dia a dia
E fosse aparecendo aos poucos, nosso amor
Os nossos sentimentos loucos, nosso amor
O zig-zag do tormento, as cores da alegria (…)
A Linha e o Linho (Gilberto Gil)
Cultura e arte
Os costumes de um povo, o dia a dia, as festas, a fé, as tradições, as lendas, as paisagens, tudo pode ser tema que transforme o bordado em expressão artística. Uma prova disso é o trabalho desenvolvido, há 36 anos, pelo Grupo Matizes Dumont, por meio do método (A) Bordar o Ser, que busca expressar a diversidade cultural do país e promover transformações sociais, nas artes visuais e gráficas. São telas, ilustração de livros, capas de discos, contando histórias. Em 2004, a família Dumont criou o Instituto Cultural Antônia Dumont, que se dedica a difundir a cultura popular brasileira e a acolher pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade, usando a arte como instrumento de desenvolvimento humano. Além disso, transformaram a arte milenar da agulha e linha em nova linguagem gráfica. Ilustraram com bordados obras de autores brasileiros, como Jorge Amado, Ziraldo, Manoel de Barros, Thiago de Mello, Rubem Alves, Carlos Rodrigues Brandão, Tetê Catalão, Marina Colasanti.
Vale ressaltar também a inclusão masculina no ato de bordar. Não como uma invasão de espaço, mas como um abraço, uma confluência de sensibilidade, um compartilhamento.
Relação com tecnologia
Num mundo de coisas pré-fabricadas e prontas para serem consumidas, fazer algo com as próprias mãos não deixa de ser uma forma de colocar um pouco de si, da própria personalidade, no que é feito. Mas ao mesmo tempo que buscam durante a prática desligar, desconectar, artesãs e artesãos do bordado usam a internet como eixo de desenvolvimento de trabalho: trocam e compartilham conhecimentos e, acima de tudo, utilizam as redes sociais como meio de aprendizagem, exposição e comercialização de produtos. A tecnologia abastece o movimento do feito à mão.
A evolução
- A História indica que a origem do bordado está no ponto cruz, técnica utilizada pelos homens pré-históricos para costurar as roupas feitas de peles. As linhas eram tripas de animais ou fibras vegetais e as agulhas, ossos.
- Os objetos bordados mais antigos, que remetem a cerca de 1.300 a.C., foram descobertos na tumba do faraó Tutancâmon.
- No continente americano, itens encontrados em uma necrópole na costa peruana indicaram que o bordado já era feito milhares de anos antes dos grandes impérios, cerca de 500 a.C.
- Quando a dinastia Han, na China, pelos idos de 200 d.C., expandiu o comércio através da Ásia Central e estabeleceu a Rota da Seda, a venda desse material criou um grande intercâmbio cultural, que teve reflexo nos bordados da época. Padrões chineses se misturaram com a arte persa e árabe, criando uma linguagem universal de motivos florais e padrões geométricos.
- Na Idade Média, na Europa, o bordado era muito usado para decorar bordas de vestimentas. Representava status social, era muito valioso e destinado à nobreza e aos mais ricos.
- Na França, também era empregado como meio de imortalizar a História. Como a tapeçaria de Bayeux, 70 metros bordados em comemoração à Batalha de Hastings, a mais antiga conservada.
- Na Idade Média, surgiu a técnica Opus Anglicanum, em veludo com fios de ouro e prata, reservada a objetos religiosos e sagrados.
- Na Inglaterra, a rainha Catarina de Aragão, primeira esposa do rei Henrique VIII, introduziu o bordado blackwork, estilo monocromático, valorizado pela complexidade e padrões elegantes, não por uma aparência chamativa.
- Com o tempo a arte de bordar se espalhou pelo mundo, mas como motivo para reunir as mulheres da mesma família para produzirem roupas e, principalmente, enxovais.
- Com o início da revolução industrial, na década de 1800, foram criadas as primeiras máquinas de bordar – essa novidade revolucionou a indústria e a produção de bordados no mundo. Conforme as máquinas foram ganhando mais espaço, os bordados artesanais migraram para o ambiente doméstico, realizados na maioria das vezes por mulheres.
- O surgimento e o crescimento dos movimentos feministas fizeram com que esses trabalhos que antes era considerados como atividades femininas tivessem um breve período de rejeição, assim como diversos padrões patriarcais da época.
- Na última década, o bordado tem voltado com força total, assumindo um lado mais contestador e criativo, um meio de expressão e criação autêntica.