Às vezes, pode vir um verso e, como uma fagulha, acende algo em nós. Ou, em vez dele, uma imagem sem palavras, uma canção, um único acorde dela. E abre a tampa, como no verso do Gullar. Saem cobras, lagartos, cardos, flores, não sei o que que incendeia. Mas, no caso, é aquele verso do Drummond, expressando que nunca está pronta a nossa edição final.
Basta um novo estímulo, na vida ou na arte, e somos levados de volta ao que parecia definitivo. Não era. Não é. Só estava de olho em Aristóteles e na próxima comédia (ou tragédia) que nos carregasse para dentro, onde tramas abertas e intrigas insaturadas estão com as bocas famintas à espera da próxima refeição narrativa. Para uma conversa que não conserve, de acordo com a expressão do psicanalista Paulo Sérgio Guedes. Uma conversa que seja o passaporte carnal para uma nova viagem da alma.
E pode ser um luto, pode ser uma alegria. Pode ser o que ainda está sem nome e o cata, na própria experiência. Há sempre algo disforme. Há sempre algo a dizer. Há sempre algo novo a dizer para deixar menos disforme. Há sempre algo a repetir. A elaborar. Sim, somos seres narrativos – Homo Narrans, de acordo com o ficcionista Luiz Antônio de Assis Brasil. E nunca aprendemos a contar direito, de acordo com a poeta Wislawa Szymborska.
Por isso, contamos e recontamos. Por isso, a criança pede sempre a mesma história. Podemos repetir exatamente as mesmas palavras, os mesmos detalhes, e a história já não será a mesma. Por isso, a criança pede para ouvir de novo. Ela sabe que ouvirá o novo. O rio do que contamos-ouvimos-sentimos já não será o mesmo e os pés dos ouvidos sentirão as novas águas. Mais quentes, mais frias, outras.
Talvez possa estar aqui o miolo de uma esperança. Basta uma fagulha de arte ou de vida e nos relançamos para tentar dizer de novo. De novo e melhor, em busca do grão de vitória que nos cabe e é verbal, de acordo com o dramaturgo Jean Genet. E, com o perdão da redundância, ao dizer de novo, tentaremos melhorar essa obra em vida de tudo o que sentimos. É infinito, interminável, pelo menos enquanto houver quem guarde a disposição renovada de contar e quem guarde o desejo, senão maior ainda, de ouvir a nossa penúltima edição.
Celso Gutfreind é Psicanalista e Escritor