Também venho pensando sobre o caso recente de Larissa Manoela, a artista cujo patrimônio vinha sendo controlado e conspurcado pelos próprios pais, deixando-a dependente deles até mesmo para pedir uma água de coco na praia. A confusão, gritada a todos os ventos, virou um escândalo público, com direito a uma opinião (pública) convergente no sentido de haver um abuso perpetrado dentro da própria casa, e foi mesmo. A clássica e terrível história de adultos abusando crianças nas cercanias da própria família.
Mas, como um fato humano, atinge a polissemia, ou seja, ganha acesso a outras possibilidades de entendimento, não excludentes em relação à primeira. Uma delas, no caso, é pensar que o abuso em si viria depois de outras questões envolvendo a passagem do tempo e o crescimento dos filhos que passam a ter autonomia diante de uma quase toda vida pela frente, em detrimento da dois pais, que está mais próxima de terminar. Narcisismo parental nu e cru, com a utilização (inconsciente) dos filhos para manter vivas certas ilusões, ou a de que a vida não passou ainda, e a morte está muito distante, quando na realidade não está. A filha, portanto, na ilusão imposta de cima para baixo, ainda seria aos olhos dos pais uma criança ou mesmo um bebê, e o paraíso (outra ilusão) daquele momento da vida segue intacto. Não, não é preciso separar-se, não é preciso ir adiante, ninguém precisa envelhecer nem morrer.
Aqui o ocorrido com a artista, guardadas todas as diferenças particulares, toca a intimidade de todos nós. Sim, há uma repercussão pública, um patrimônio muito acima de quase todas as médias, mas eles nos representam. Não teria havido ali um movimento de separação, de autonomia, de individuação, essa construção lenta, laboriosa, necessária e ao mesmo tempo interminável em nossas vidas e mortes.
Larissa teve forças para dar um basta que, um dia, todos nós precisamos dar. Ele se alicerça ainda na infância, com os primeiros movimentos de autonomia, presentes já no bebê. O auge ocorre na explosão da adolescência, talvez por isso tão difícil e dolorida. Mas sempre é tempo, mesmo diante dos tempos implacáveis. Larissa Manoela o fez ruidosa e publicamente, aos 22 anos, o que, nas médias da vida contemporânea, nem é tão tardio assim. E nos lembra o mesmo desafio de todos nós, sendo que muitos, ainda que de forma menos escandalosa, andam adiando bem mais do que ela.
Celso Gutfreind é Psicanalista e Escritor